sábado, 10 de agosto de 2013

O céu, a neve, a fome



Provavelmente uma das melhores leituras de 2013, Tudo o que tenho levo comigo (Cia das Letras, 2011), é uma obra extremamente poética e sensível, ao mesmo tempo que carrega uma carga brutal e terrível. É impossível não ser seduzido pela escrita da ganhadora do premio Nobel de 2009, Herta Müller, ainda nas primeiras páginas, onde cada frase, cada detalhe, é calculado de modo a criar um universo totalmente belo.
A história se passa no final de 1945, numa Romênia pós-guerra dominada pela União Soviética, e começa com a ordem de Stalin para que os alemães paguem pelos custos da guerra, e com isso milhares de pessoas são mandadas para campos de trabalhos (o que achei uma tremenda ironia, uma espécie de justiça poética). O protagonista é Leopol (Leo) Auberg, um garoto de 17 anos que está em pleno processo de autodescoberta, experimentando as sensações do homossexualismo. Mas, uma vez que seu prazer tenha de ser secreto (no país em que vive o homossexualismo é considerado crime, podendo ser punido com a morte), ele deseja desesperadamente chegar em um lugar onde ninguém lhe conheça e ele possa ser livre, razão pela qual, a principio, o campo de trabalhos na União Soviética não parece tão terrível. Todavia, nos cinco anos que se seguem, os horrores e a bestialidade brutal da vida subumana irá mudar sua percepção, e, com mais intensidade, irá mudar a si mesmo.
Herta Müller
É uma história delicada e terrível, narrada com uma poeticidade belíssima, que toca o leitor até pela escolha das palavras. É uma história sobre anulação, uma viagem de autodescoberta niilista que, sob os horrores da repressão, é quase uma sátira ao Bildungsroman, o romance de formação, criado pelos próprios alemães ainda no século XIX e que é uma das conquistas romanescas mais louvadas de todos os tempos. Este romance, em contrapartida, é quase um romance de “desformação”, pois nas palavras do próprio personagem-narrador, descreve a maneira como o campo de trabalhos vai apagando o elemento humano.
Entretanto, em nenhum momento o peso da história contagia a narrativa. Isso porque Müller criou uma forma de narrar tão leve quando concisa. Suas frases são curtas, chegando a tecer capítulos de um parágrafo, mas, talvez mais do que com o que conta, os silêncios da narrativa, aquilo que ela deixa subentendido nas sentenças curtas, é a verdadeira essência da história. Ao mesmo tempo, ela está sempre buscando figuras suaves para construir sua imagética: nuvens, cores, anjos; e são essas figuras que tratam dos aspectos mais terríveis dos fatos, e da onde vem a leveza do livro. O próprio personagem, Léo, é de uma delicadeza encantadora, e de suas palavras o campo ganha um melancólico tom quase romântico. Trata-se de um poderoso poema em prosa.
Um livro poderoso, que comove e cativa, que conta sobre um período negro da história, é verdade, mas conta, mais que tudo, sobre a identidade humana.

"Pequenos tesouros são aqueles em que está escrito: Aqui estou eu.
Maiores tesouros são aqueles em que está escrito: Você se lembra.
Os mais belos tesouros, porém, são aqueles em que se inscreverá: Estive aqui."

– MÜLLER, Herta. Tudo que tenho levo comigo. São Paulo: Companhia das letras, 2011; 276.

Um comentário:

  1. Livro sensível, poético, que foge do lugar comum das obras que se passam durante a Segunda Guerra, mesmo que toque nos pontos mais conhecidos deste período. É o único livro da Herta Muller que eu li. Fiquei fascinada com o seu domínio narrativa, como ela sabe escolher cada palavra e tecer cada frase na medida certa, provocando no leitor o sentimento necessário. Lembra a Elvira Vigna.
    Abraço!

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