quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Os fantasmas de Stephen King – Resenha de Doutor Sono




Quando Stephen King anunciou que estava escrevendo uma continuação para seu clássico O Iluminado, muita gente (principalmente os fãs do bom e velho Kubrick) já foram torcendo o nariz. Não que a ideia de reencontrar e descobrir o que aconteceu com o menino Danny Torrance não tenha deixado todo mundo muito animado, mas, como o próprio King admite no epílogo do livro, um remake, uma continuação, ou seja o que for, de um clássico, é sempre um desafio – e quase sempre um resultado infeliz. Assim, Doutor Sono (Suma de Letras, 2014), é apresentado pelo próprio autor como um “exorcismo” do personagem que nunca abandonou sua mente (e a dos leitores, aparentemente). E assim, King traz seu personagem da década de 70 até os dias de hoje.  
A história começa com os acontecimentos subsequentes ao primeiro livro, contando que fim tiveram os personagens sobreviventes (e alguns fantasmas também). Mas o fato é que os fantasmas tão assustadores de O Iluminado não estão no plano principal dessa sequência. Outro tipo de terror está destinado a se chocar com o pobre Danny. Mas já chegamos lá. O livro vai narrando a vida do garoto ao longo das décadas subsequentes, como ele perdeu a mãe, se envolveu com bebida, e, em suma, de que forma o anjinho do hotel Overlook se tornou uma pessoa ruim. O que acaba transformando a narrativa em uma história de redenção, quando Danny chega em uma nova cidade, pequena, e decide mudar de vida, conseguindo trabalho em um asilo. É nesse asilo que ele ganha a alcunha sinistra de Doutor Sono, pois embora seja apenas um enfermeiro, seu dom psíquico lhe permite “facilitar” o momento da morte dos pacientes, motivo pelo qual ele ganha algum respeito.
Capa do livro
E assim os anos se passam, até que uma garota, Abra Stone, entra em sua vida. E trata-se de, nada mais nada menos, uma versão super poderosa em miniatura do próprio Danny (tão poderosa que ela tem seu primeiro contato psíquico com Danny aos três meses de idade), e assim como o protagonista do primeiro livro, ela logo chama a atenção das criaturas das trevas: o Verdadeiro Nó. Uma seita de criaturas que podem viver para sempre se alimentando de crianças com “iluminação”. E conforme o Verdadeiro Nó se volta contra Abra, ela procura ajuda em Danny, que se tornará seu mentor e melhor amigo na luta eminente que se aproxima.
King mostra novamente seu poder fantástico de criar personagens nesse livro, pois todos eles (inclusive os vilões) são extremamente cativantes, sendo que provavelmente essa característica seja o ponto forte do livro. É impossível não querer saber como a história termina e ler suas 500 páginas em três dias. Mas um ponto me chamou bastante a atenção: a mudança total na natureza da história.

Para quem leu (ou assistiu) O Iluminado, nos é apresentada uma família com problemas estruturais e financeiros, e uma cena de total isolamento, na qual os três (quatro com o cozinheiro) ficam presos em um hotel isolado contra os fantasmas que na época eram o auge do assustador. Mas hoje em dia, se pensarmos em termos de mercado, o que está na moda é o extremo oposto, ou seja, as histórias de equipes (vide Os Vingadores) e as tramas com muitos personagens (bate aqui tio Martim), e para falar a verdade, séries como Supernatural tornaram os fantasmas bem menos assustadores. E o resultado é a reformulação total de Doutor Sono em detrimento da primeira história. Nós temos dois protagonistas, com muitos “amigos” para ajudar, e um grupo de vilões que não deixam de ser simpáticos. Não sei se só eu achei isso, mas essa “atualização” da história me pareceu muito significativa, e até legal, se pensarmos que estamos acompanhando o desenvolvimento das narrativas fantásticas e de terror. Em todo caso, a história é envolvente e te convence, mesmo sem dar medo. É uma boa leitura, como praticamente tudo que o Stephen King escreve, e os fantasmas de Stephen King são agora, mais do que nunca, pops. 

Stephen King

quarta-feira, 9 de julho de 2014

O Que Woody Allen E A Literatura Russa Têm Em Comum?

 
Woody Allen

A primeira coisa que alguns leitores podem estranhar é a relação entre uma personalidade do cinema com um blog de literatura. E embora exista uma discussão bem antiga e reconhecida sobre a proximidade entre as duas artes (cinema e literatura), com estudos e teses bem interessantes (inclusive a que estamos prestes a lançar, rs), no caso do cineasta americano essa relação é bem mais próxima. Escritor por vocação, Allen começou sua carreira como roteirista, a qual continua até hoje, muito mais reconhecida, claro, e, além de suas contribuições escritas para o cinema, também conta com vários livros publicados, entre contos, crônicas e até peças para o teatro. Assim, nem dá para pensar muito longe das belas letras a obra do comediante mais trágico dos EUA. Entretanto, e é aqui que começamos nossa análise, existe mais em comum entre Woody Allen e Dostoiévski, que entre o cineasta e Ingmar Bergman, que é um dos diretores mais apreciados por Allen.
Antes de continuar, contudo, devo confessar que este que vos fala é um tremendo fã desse judeu neurótico, e talvez eu acabe dando as observações que eu faça algum valor demasiado, mas vamos lá.
Em 2011, Woody Allen em um documentário sobre sua vida falou sobre certas influências literárias, em destaque especial para a literatura russa, o que eu já havia constatado. Afinal, quem não sentiu um deja vu em Mach Point (2005) quando dezenas de alusões diretas e indiretas à Crime e Castigo começaram a saltar da tela? A ideia do crime enquanto clímax máximo da narrativa, e as complicações ideológicas já haviam sido inclusive abordadas em outros filmes do diretor. 
Um deles foi o filme Crimes e Pecados, de 1989, com uma problemática muito parecida com a do filme de 2005, mas uma abordagem muito mais psicológica, quase freudiana. O interessante é que, diferente do grande autor russo, o cineasta parece bem menos esperançoso na consciência e na redenção humana. É quase uma confissão de desilusão, repleto de uma insatisfação existencial que beira o vazio. Outra referência pode ser encontrada no filme O Sonho de Cassandra, de 2007,  com uma trama em torno de dois irmãos muito diferentes que se envolvem em um conflito com desenlace trágico, bem ao estilo Irmãos Karamazov.
Entretanto é em outro clássico, A Última Noite De Boris Grushenko, ou apenas Love And Death, no original em inglês, que a relação com a literatura fica mais evidente. Comédia com um alto teor pastelonico ainda da primeira fase do diretor, do ano de 1975, o filme é uma sátira dos romances russos do século XIX. Ambientado em uma Rússia muito parecida com a de Tolstói em Guerra e Paz, o filme trata de todos os componentes filosóficos dos escritores russos, como o sentido da vida e sua ausência de valor, o significado de Deus, a relação com a morte, a verdadeira natureza do amor, etc., e isso sem perder a piada. O filme ainda faz vários trocadilhos com os romances mais importantes da literatura russa, e algumas alusões discretas.

Cena de Love and Death

Dito tudo isso, entretanto, ainda falta ressaltar aqui o caráter mais literário e mais russo dos filmes de Woody Allen. Um dos maiores escritores russos, chamado de pai do conto moderno, Anton Tchekhov, foi responsável por desenvolver uma técnica narrativa que girava em torno da ausência de um começo e de um final para as tramas. Basicamente o escritor acreditava que os personagens deveriam ser apresentados pela própria narrativa ao longo do desenlace dos acontecimentos, sem que fosse explicado piamente todos os pormenores do contexto e de cada personagem. Da mesma forma, sua ideia era, a grosso modo, deslocar o final para antes ou depois do ponto culminante da trama. Assim, onde um escritor comum terminaria seu conto, Tchekhov continuaria por mais tempo a história, ou a interromperia antes. Isso para dar a trama um ar mais natural, mais próximo da realidade, que é fluida e não polida para o palco.
Anton Tchekhov
De volta ao nosso tema principal, Allen adota abertamente essa técnica. Quem está acostumado a assistir seus filmes deve já ter se perguntado mais de uma vez: “Mas termina aí?” (vide Blue Jasmine). Campeão em interromper a história no clímax, filmes como A Rosa Purpura do Cairo, o clássico Manhattan e Anne Hall seguem essa estrutura, deixando no ar o possível final e promovendo uma verdadeira quebra de expectativa no publico. Por outro lado, ele também não oferece explicações para todos os acontecimentos, ou alguém consegue explicar como o protagonista de Meia-Noite em Paris viaja no tempo? O que também é um traço de Tchekhov, que era contra o excesso de explicações em uma trama.

No documentário Woody Allen de 2011, o cineasta citou vários escritores que o influenciaram, inclusive Tchekhov, Dostoievski e Tolstói. Claro, as relações de estrutura aqui propostos podem ser – ainda que seja improvável – coincidência, mas não seria de se estranhar que um dos maiores diretores e escritores modernos se utilize justamente da técnica de um dos maiores escritores do passado. E se você não leu esses caras e não viu os filmes do Allen, acredite, você não sabe o que é viver. Rs. Em todo caso, assim como os grandes escritores aqui sitados, Allen é um profundo observador e analista de seu tempo, e seus filmes são um retrato da psicologia do homem moderno. 



Melhor filme de Woody Allen na minha opinião

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Um retrato da morte – resenha de Homem comum de Philip Roth



A perspectiva da morte pode ser muitos, como diria Elias Canetti, o motivador da vida, mas, entretanto, porém, todavia, para a geração de escritores americanos judeus que despontaram ao longo do século XX, como o cineasta Woody Allen, e o romancista Philip Roth, a morte é motivo de muita angústia. A perspectiva de morrer é, antes de mais nada, um motivo de letargia. E é justamente essa imagem da morte que Philip Roth aborda em um de seus melhores romances do fim de sua carreira, Homem comum (Cia. das Letras, 2011).
O livro apresenta um personagem anônimo, que ao longo de sua vida vai descobrindo os significados e a presença da morte. Narrado em terceira pessoa e de forma não linear, o livro começa literalmente pelo fim, com o enterro do protagonista. Depois o livro segue mais ou menos linear desde a infância do (herói?) até sua velhice e, consequentemente, sua morte. Um ponto interessante a ser ressaltado é que a maior parte da narrativa não se passa na juventude, mas no começo e final da velhice do protagonista. Mesmo quando o livro descreve cenas memoráveis, como sua primeira internação para sua primeira cirurgia, e o medo infantil de se estar naquele lugar, é somente na velhice que o narrador consegue alcançar os melhores pontos do livro – vale lembrar que o próprio Roth já estava há muito tempo na terceira idade.
Philip Roth 
Mas talvez exista outro elemento fundamental na história além da morte: a solidão. É um livro que trata abertamente da solidão humana e da capacidade do homem moderno de dissolver os vínculos com as pessoas que lhe são mais queridas. Assim, ao longo da vida do protagonista assistimos na verdade um longo ato de morrer, e muito solitário. O narrador nos conta como ele trocou seu primeiro casamento precipitado por um casamento seguro e feliz, e este segundo casamento por um terceiro, ainda mais impulsivo e menos racional, até o ponto em que finalmente termina sozinho. Assistimos o ódio dos filhos do primeiro casamento, que logo os mantém longe do pai, e os problemas da vida da filha de seu segundo casamento, que como tal também se vê afastando-se do protagonista. Além de testemunharmos as constantes perdas dos familiares e dos amigos do (herói?) para a morte, e o afastamento do irmão que tanto o amava devido ao simples fato de que a vida torna algumas pessoas – no caso o protagonista – alguém amargurado demais para conviver.
O trágico na obra, que não apresenta um conflito ou uma reviravolta como muitos estão acostumados em livros, é a aparente perda de sentidos que a vida nos impõe. O que amamos ou nos é tirado, ou é virado contra nós, e isso naturalmente, feito muitas vezes por nós mesmos, e muitas vezes conscientemente. A ideia da vida, na obra, é quase existencialista, no sentido que não há uma razão, nem um Deus, e a vida irá continuar, mesmo sem nós. É impossível ler esse livro e não ficar ao menos um pouco triste, sentindo no fundo do estomago aquele vazio impreenchível.

Em todo caso, é meu segundo livro de Philip Roth, e pela segunda vez ele me cativou completamente, dessa vez sem os exageros sexuais de O complexo de Portnóy, mas de uma forma tocante e leve, ainda que mergulhando no mais profundo e pesado tema da existência humana. 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

LITERATURA SEM FRONTEIRAS: TRAMAS FICCIONAIS CONTEMPORÂNEAS



Era uma vez, há muitos e muitos anos atrás, uma espécie que a ciência decidiu chamar de “Homo Sapiens” (a denominação vem do latim e significa “homem sábio”). Essa espécie, assim como nos relata o fabuloso Wikipédia, tem o cérebro extremamente desenvolvido com inúmeras capacidades como: raciocínio abstrato, a linguagem, a introspecção e resolução de problemas.
            Mas não é só isso...
            Essa espécie (cujo os valores ainda são questionáveis, mas tudo bem, não é essa a discussão de hoje) sempre possuiu uma necessidade advinda de uma sensibilidade de se fazer comunicar, interagir e........... FINGIR.
            Para uma tentativa de atingir essa satisfação o homem sempre recorreu ao Fictus (Ficção). Melhor esclarecendo, o “Homo Fictus” sempre existiu, o homem desde os primórdios se revestiu da habilidade de transfigurar a realidade em ficção, ou como preferem os mais utópicos, fantasia. (Só lembrando, sem um maior compromisso de esmiuçar o assunto, que a ficção por muitos anos possuiu também a função da ciência).
            Considerando que estamos falando de uma época absolutamente remota, levamos em consideração a inexistência da escrita (apesar de não descartarmos a hipótese de as imagens ser uma habilidade de escrita comunicacional). A forma de compartilhar as histórias ficcionais era feita, privilegiadamente, através da modalidade oral. Nesse caso, A MÍDIA ERA O PRÓPRIO HOMEM.
            Pecaríamos abundantemente se afirmássemos que a prática oral de contação de histórias não envolve um trabalho estético. Existe toda uma preocupação que vai desde a postura do contador à entonação de voz.   Mas a questão da contação de histórias já está, ao meu ver, muito bem resolvida e legitimada enquanto uma prática literária. A questão que pretendo esboçar nessa pequena discussão diz respeito às novas demandas comunicacionais, mais especificamente, as que apresentam em sua composição a presença da narrativa ficcional e propor, dessa forma, uma reflexão sobre uma visível afinidade dessas narrativas emergentes com a Literatura.
            Um primeiro, e mais difícil dos passos, seria estabelecer um conceito único, concreto, absoluto, autônomo e (blá, blá, blá) para a Literatura.  E isso, já adiantando, é tarefa impossível, ou no mínimo, falha. Até porque a literatura é um processo subjetivo que desrespeita paradigmas. Afirmar com toda autoridade que “Literatura é a arte da palavra” não me convence, pois não se especifica se essa palavra é impressa, digitalizada, desenhada ou falada. Alguém teria a coragem de rotular a Literatura como “A arte da palavra impressa”?
            Se assim for feito, vamos dizendo adeus em garantir que os contos de fadas são literatura, uma vez que se nasceram da tradição oral...
            Eu prefiro, ao invés disso, dizer que a Literatura é uma narrativa, essencialmente ficcional (construída a partir da linguagem verbal) capaz de transfigurar a realidade em ficção e provocar no receptor a maravilhosa “catarse” ao passo em que o permite uma aprendizagem (seja de uma cultura diferente, épocas distantes, valores pessoais, morais éticos e tal). Outro fator interessante é que a Literatura tem (não exclusivamente) a função de um registro de costumes (sociais, linguísticos, políticos, religioso e blá, blá, blá) pertinentes a uma determinada época.
            [Baseando nisso, faça uma reflexão silenciosa consigo mesmo tomando como objeto as narrativas contemporâneas.... ]
            Antes que eu me empolgue demais nesse assunto e comece a falar exclusivamente dos Best Sellers, me concentrarei no título dessa discussão. A Literatura do século XXI está sujeita às expectativas do leitor, ok. Mas além disso, está diretamente ligada a outras demandas artísticas, como por exemplo: cinema, telenovela, teatro e... Videogames.
            É muito comum, atualmente, entrarmos em uma livraria e encontrarmos um livro com a capa de um filme. É comum também abrirmos um site de portal e nos depararmos com a notícia de que o nosso livro predileto será adaptado para as telas. E tornou-se, igualmente comum, vermos um game exposto nas livrarias em adaptação impressa. Vivemos em uma cultura em que o game pode ir para o cinema e depois virar livro, ou então o filme vira game, ou o game vira livro e vice-versa (quase confuso não é ?! rsrsrs).
            Tudo isso faz parte de uma cultura, a qual o incrível Henry Jenkins chama de “Cultura da Convergência”. Lindíssimo termo...  
            Nas palavras de Jenkins (2009):
Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam estar falando. [...] No mundo da convergência das mídias, toda história importante é contada, toda marca é vendida e todo consumidor é cortejado por múltiplas plataformas de mídia. (JENKINS, 2009, p. 29)
            
Essa cultura é fruto de um novo dilúvio....
            Sim, podem pensar no dilúvio bíblico. Pierre Lévy, dedicou em seu “Cibercultura” um tópico introdutório denominado “Dilúvios”. Nesse tópico, ele nos remete ao dilúvio ocorrido na época de Noé e que representou o fim de uma era e o começo de uma nova. O novo dilúvio, ocorrido há pouco tempo atrás, foi um dilúvio informacional, tecnológico. Fomos banhados por um imenso oceano de informações, advindas com a internet, e isso representou o início de uma nova era informacional e tecnológica.
            Desse novo dilúvio, surgiram novas ilhas...
            É importante observarmos que esse novo dilúvio não representou a morte de uma era, mas uma modificação da mesma. Não é segredo que muitos temeram que os E-books eliminariam as obras impressas, que o cinema e a televisão fariam as bibliotecas e livrarias serem extintas. Mas, visivelmente, não é verdade. As livrarias continuam mais cheias do que nunca. As novas formas de arte estão convergindo e não eliminando as antigas.             Bem, concluo que vocês possam se sentir um pouquinho enganados pelo título desse texto (rsrs). A intenção foi alertar para o fato de que as novas mídias possuem traços da Literatura. Isso não quer dizer que deveríamos analisar os Videogames com o instrumental teórico da Literatura (isso seria colocar um bolo quadrado em uma forma redonda). Também não estou afirmando com todas as palavras que os Videogames são Literatura. Mas podemos sim, considerar os games como uma nova forma de narrativa ficcional.
            Cabe, portanto, a Literatura dar conta de formular um novo instrumental teórico capaz de atender as provocações da arte.
            Espero, no próximo texto, poder compartilhar informações mais específicas.

            Até a próxima...

- Mario Lousada
Mestrando em Teoria da Literatura UEM

Referências
CANCLINI, N.G. Leitores, espectadores e internautas. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.
COMPAGNON, A. O demônio da teoria. Literatura e senso comum. Tradução Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
JENKINS, H. Cultura da convergência. Tradução de Susana Alexandria.
São Paulo: Aleph, 2009
.
LÉVY, P. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo:
Editora 34, 1999.



A origem dos monstros – resenha de O Horror de Dunwich de H. P. Lovecraft


Todas as cidades são assombradas por histórias macabras: crimes horríveis, incesto, monstruosidades sobrenaturais que supostamente habitam o lugar; mas a cidade de Dunwich é aparentemente muito mais maligna que qualquer outro lugar da terra. Marcada pela tradição das famílias mais antigas de dormirem com membros da própria família, não raramente irmãos ou primos, a cidade é assombrada por tipos bastante bizarros. E o tipo mais sinistro é a família de Whateley. Os Whateley sempre estiveram envolvidos em todo tipo de comentários macabros: bruxaria, pacto com o diabo, experiências estranhas; e quando o casal tiveram um filho que pouco se parece com um humano, esses rumores começaram a ganhar força. A criança, Wilbur, macabra cresce de forma impossível: com menos de 10 anos aparenta três vezes essa idade. Seu corpo é hediondo, de formas estranhas, pouco natural. Sua voz é gutural, de uma maneira que não lembra em nada uma voz humana.
O monstro no Sótão
Acompanhando tudo isso outro fato estranho: o gado da família começa a desaparecer de forma inexplicável, e o patriarca da casa continua a reformar e ampliar a parte de cima da casa de um modo suspeito, e estranhos barulhos que escapam do sótão. Estranhos assassinatos começam a ocorrer na cidade. Primeiro animais, cachorros. Depois pessoas. E as primeiras vítimas são os pais do estranho Wilbur, o garotinho com cara de bode que cresce em uma velocidade absurda. E enquanto Wilbur se torna cada vez maior, ele procura pelo mundo livros estranho de magia negra e história apócrifa. E é essa obsessão o curador de uma biblioteca de uma importante universidade americana, o Dr. Armitage a desconfiar que existe algo errado com o rapaz, e um perigo eminente se aproxima. O que ele não imagina, é que trata-se de um perigo que pode destruir a humanidade, envolvendo coisas mais antigas que o homem, e seres mais medonhos que a mera imaginação.
Howard Phillips Lovecraft
É nesse universo de sombras, mistério, terror e demônios que H. P. Lovecraft leva o leitor nessa pequena obra prima que é O horror em Dunwich (Hedra, 2012). Pequena porque a história em si tem em torno de cinquenta páginas, mas o universo que Lovecraft criou é imenso, tão grande quanto a própria eternidade. E o poder de narração do autor norte americano é tão forte que ele arrebata o leitor de onde quer que este esteja e transporta até o sombrio e assustador interior dos Estados Unidos. Está é uma combinação de folclore, com mitos milenares, amarrados por uma prosa perfeita. Não existe enrolação, e o terror se dá pelos seus elementos mais clássicos: o desconhecido, as sombras, os silêncios, os sons estranhos, os acontecimentos inexplicados.

Esse foi meu primeiro contato com Lovecraft, mas o nome já era muito conhecido. O próprio Stephen King fala muito do autor, e o Lovecraft escreveu um dos primeiros ensaios sobre literatura fantástica e de terror. Cada página do livro me prendeu, e me fez querer ler mais coisas sobre o autor, que aparentemente escreveu mais obras curtas que longas. Em todo caso, nenhum fã de terror é fã de verdade sem ler um pouco de Lovecraft. 


sábado, 19 de abril de 2014

Uma odisseia para o Século XXI – resenha de 2001 – Uma odisseia no espaço



Tudo bem que existe um consenso hipócrita quase universal de que não se deve julgar um livro pela capa, mas como diria Oscar Wilde “apenas os tolos não julgam pela aparência”, e não tenho vergonha alguma em dizer que o que me levou a ler o clássico de ficção cientifica do britânico Arthur C. Clarke foi o incrível projeto gráfico da edição de 2013 da editora Aleph. Muito original e chamativa, o livro vem em uma caixinha que seria a capa original, mas o livro em si tem um detalhe fantástico: é todo preto (inclusive o corte das páginas). O preto já é minha cor favorita (resquícios de uma adolescência com forte inclinação para o gótico e para o heavy metal), e quando eu vi essa edição inteligentíssima copiando um monólito não consegui resistir, fui literalmente seduzido pelos olhos antes de pelo conteúdo. E apesar de toda carga de culpa que emana de uma decisão tão fútil como a minha, preciso dizer em minha defesa que de outra forma provavelmente nunca o teria lido, porque eu literalmente dormi quando assisti ao filme 2001: Uma odisseia espacial (fãs de Kubrick ficando indignados em três, dois, um...). Em todo caso o livro não só me reanimou para reassistir o filme, como também para ler mais ficção cientifica.
Arthur C. Clarke
E caso ainda exista um ser na terra (não vamos arriscar no universo, afinal, podemos não estar tão sozinhos assim e ETs devem ter mais o que fazer do que ficar acompanhando nossa cultura pop) que não conheça a história, 2001 – Uma odisseia espacial, é uma viagem por mais de três milhões de anos na história da humanidade (e do universo também). O livro começa junto dos primórdios da humanidade, lá na África do tempo dos homens macacos (antes dos homens da caverna propriamente dito). Esse ponto da narrativa é curioso, porque faz profundas reflexões, como, por exemplo, como funcionava a linguagem antes do invento da própria linguagem. Em todo caso, numa bela manhã, surge no meio de uma tribo homens macacos um estranho monólito todo negro que começa a executar estranhas experiências com esses homens macacos. O que os homens macacos não tinham como saber (nem qualquer pessoa que não tenha lido o livro ou visto o filme), é que foi exatamente esse monólito quem despertou as primeiras ondas cerebrais responsáveis por fazer evoluir o homem macaco, e com isso, começou a humanidade.
Milhões de anos depois, com a humanidade já estabelecida e desenvolvida, as viagens espaciais são coisas comuns, e um importante cientista americano, o Dr. Floyd, é designado para investigar um estranho acontecimento na lua (é curioso dizer que o livro foi escrito alguns anos antes da primeira viagem para a lua). Muito mistério está envolvo do que se passa na lua, mistério criado para impedir que os outros países que não o EUA (obviamente) descubram que finalmente foi descoberto a primeira prova de que existe vida inteligente fora da terra e, pasme!, trata-se de um monólito negro enterrado em uma cratera na lua!
Hall 9000
Depois a história salta para o terceiro e último foco narrativo, dois anos após os acontecimentos da lua, com uma expedição para Saturno, com o suposto objetivo de fazer as primeiras pesquisas tripuladas no planeta. Mas a verdade é que essa viagem possuí uma missão muito mais importante para humanidade. Qual? Se você não consegue adivinhar leia o livro. E é também nesse ponto que entram um dos personagens mais marcantes do filme (e do livro) e Kubrick, o super computador Hal 9000. Um tipo de inteligência artificial com alguma propensão para a psicopatia e que carrega as respostas por trás da missão, e com uma das falas mais emblemáticas do cinema, que até hoje faz fãs de ficção cientifica se arrepiarem: "Hello, Dave".
Desse ponto em diante a história deslancha, e o que temos é o máximo da capacidade criativa e cientifica humana (ao menos na época), com algumas teorias incríveis, outras absurdas e uma ridícula. Em todo caso, o livro de Clarke tem outro curioso detalhe: ele foi escrito a partir de um roteiro, ou, mais precisamente, ao mesmo tempo que um roteiro (o do filme homônimo dirigido por Kubrick), contrariando o processo onde livros são adaptados para roteiros. Em todo caso, fãs do filme fazem críticas ao livro por dar “detalhes demais” e “muitas explicações” sobre as coisas fantásticas e quase psicodélicas que o filme mostra sem respostas. Em todo caso, levando em consideração as limitações do filme na época de sua produção, ler o livro é como ter acesso ao único remake possível onde a história pode ser melhor que a original, afinal, uma nova versão do filme com certeza seria um fracasso. Assim, se você procura novas experiências com a leitura não perca tempo, e leia esse livro, principalmente pela correspondência que ela faz com outro clássico, a Odisseia de Homero, no sentido em que ela propõe uma viagem ao desconhecido, frente às coisas grandiosas do universo e aos segredos dos possíveis deuses que habitam o universo. Mais do que isso, 2001 é uma leitura para a nossa época, pois somente em pleno século XXI, com o atual conhecimento cientifico da humanidade, podemos ter uma dimensão exata do que foi preciso ou absurdo, perfeito ou desnecessário, na obra clássica de Clarke.




PS: Um último comentário: esse livro me fez sofrer muito ao me fazer perceber que eu nunca irei pisar “de verdade” em outro planeta. T.T

Edições antigas: (o primeiro livro 2001 fez tanto sucesso e o autor, Arthur C. Clarke ficou tão impressionado com os avanços científicos dos anos pós filme\livro, que ele decidiu começar uma série, da qual resultou mais quatro livros).



Cena do filme:


sexta-feira, 11 de abril de 2014

O tempo no paraíso – Resenha de Em Algum Lugar do Paraíso



Eu não sou fã de crônicas, quem me conhece sabe bem disso, mas, algumas vezes, consigo achar um ou outro livro que realmente me cativa. Nesse caso, nem deveria ser novidade, afinal em termos de crônicas Luis Fernando Verissimo é talvez o nome maior no cenário literário nacional, e ele está fazendo muito jus ao título na obra Em algum lugar do paraíso (Objetiva, 2011). Acho que nunca ri tanto em um livro como nesse, embora isso outra pessoa que leu não pareceu achar tanta graça como eu (o que me faz pensar no quanto é fantástica a subjetividade da literatura). O livro reúne 41 crônicas, sobre os mais diversos temas, indo desde reflexões sobre o tempo com adornos religiosos, até um desfecho inusitado para a peça absoluta de Beckett.
Em suma essas crônicas reúnem todo humor que marca propriamente o gênero crônica, e traz consigo toda crítica implícita do autor sobre a sociedade brasileira. Na maior parte das vezes, essa crítica é voltada para a classe média e classe média alta, naquilo que podemos chamar de “comédia de costumes”. É o caso da crônica onde um ex-rico preciso se controlar no mercado, apesar do desejo desesperado de comprar produtos importados. Mas, por outro lado, algumas crônicas são apenas humorísticas, e particularmente eu achei que são as melhores. É o caso da crônica do astronauta que é confinado sozinho pela NASA, e que com o passar do tempo começa a enlouquecer. É de morrer de rir. Na verdade, não lembro de ter gargalhado tanto em um livro antes.
Luis Fernando Veríssimo
Mas o ponto alto do livro é de longe a primeira crônica, que também é a crônica que dá nome à obra. Veríssimo faz uma divertida e profunda análise das dimensões do tempo, de como ele se configura para nós de modo que podemos reconhecer em um domingo algo que nos faz pensar em domingo, ou na segunda, etc. Ao mesmo tempo, ele propõe que as datas são inúteis, porque não servem verdadeiramente para marcar como as coordenadas, e em algum momento de nossas vidas estamos todos a orbitar na existência. Profundo não? Então, livro super recomendado!

Eu sou fã do escritor gaúcho mais pelos romances que pelas crônicas (por alguma razão, sempre achei a dita comédia de costumes algo fraco, que remete a um tipo de literatura superficial), mas, deixando de lado minhas opiniões sobre os rumos da literatura brasileira, eu nunca fiquei tão surpreso com um livro de crônicas e posso dizer que além de ler os romances e contos, com certeza lerei mais crônicas do Veríssimo. 

"As datas deveriam nos  fixar no tempo como as coor denadas geográficas nos fixam no espaço, mas a analogia não funciona. O tempo não tem pontos fixos, o tempo é uma sombra que dá a volta na Terra. Ou a Terra é que dá voltas na sombra. Nossa única certeza é que será sempre a mesma sombra — o que não é uma certeza, é um terror."

sexta-feira, 4 de abril de 2014

O campo de centeio – Resenha de O Apanhador no Campo de Centeio



E para terminar nosso mês mais que especial de clássicos, escolhi um dos cem livros mais importantes do século XX, e que marcou gerações e gerações de leitores no mundo, com mais de 250 mil exemplares ainda vendidos todos os anos, mais de cinquenta anos após seu lançamento! Confira:
Existem livros que quando você decide se aventurar por suas páginas te causam aquela sensação de estar pisando em território sagrado, e a despeito da ausência de arvores que queimam sem jamais se consumir, trovões, vozes sinistras vinda do além e luzes mágicas, essa sensação de sagrado é ressaltada por todo mito que reveste a obra. E nem é preciso ler um capítulo inteiro, já basta o título para desencadear um palpitar diferente no seu coração, só para você sentir que está diante de uma lenda da literatura. E embora os Harolds Blooms da vida tenham uma ou outra palavrinha para dizer sobre esse fenômeno de canonização literária, o que te importa é que algum deus das palavras decidiu dividir com você um pouquinho de sua grandiosidade atemporal. E foi mais ou menos isso que ler O apanhador no campo de centeio (Do Autor, 2012) significou para mim.
J. D. Salinger, enquanto agride o fotografo
E eu sei que se você está lendo isso é porque está esperando aquele momento do “e o livro fala sobre...” e “o que eu achei do livro...” mas, antes do praxe, preciso dizer que toda essa aura de mito me fez, quando comecei a ler, ter aquela sensação de estar realizando algo, e quando terminei fui mais uma vítima da idealização vs. realidade, sem que isso signifique que eu não tenha gostado, só que toda expectativa criou um quadro irrealizável na prática, o que não me tornou o mais ideal dos leitores (você também já deve ter passado por isso).
Agora, enfim, vamos falar do livro! O livro polêmico, que colocou J. D. Salinger ao mesmo tempo no limbo dos autores “proibidos” em várias partes do mundo (e do próprio EUA), e nos pedestais dos maiores escritores do século XX (dá para entender porque o cara decidiu se isolar boa parte de sua vida). Em todo caso, o livro que também é envolto por polêmicas, censuras e proibições, além de ser associado com vários assassinatos famosos (os Beatles que o digam), também é responsável por uma das maiores revoluções literárias já registradas. E não apenas para a literatura americana, para a literatura mundial como um todo. Há até críticos que dividem a literatura do século XX com um antes e depois do O apanhador no campo de centeio.
E isso porque Salinger promoveu uma revolução no campo das palavras, tanto pelo vocabulário que adotou, como pela escolha de seu personagem. Holden, o anti-herói adolescente mais cultuado do mundo, é uma versão dostoievskiana de herói mirim. Perturbado, ambíguo, o personagem se tornou um símbolo da rebeldia juvenil. E embora o personagem tenha uma grande quantidade de dor e ódio voltado para a sociedade como um todo, boa parte desse ódio o próprio protagonista não consegue explicar, e não chega direto a nós os leitores, se não por meio de sutilidades e subtendidos propositais deixados como pista pelo autor. Mas falaremos já já disso. Por outra, o outro ponto que é fundamental na obra ser citado é a revolução da linguagem. Embora gírias e dialetos do submundo já houvessem sido empregados antes (como por Victor Hugo), Salinger criou uma revolução ao trazer primeiramente isso ao primeiro plano, dando nas mãos de alguém desse meio a narrativa, alguém que além de utilizar essa linguagem ainda se expressa tão inconstantemente e algumas vezes vago quanto um adolescente problemático. Assim a narração acontece com palavras fortes, marcadas por gírias, e que transmitem toda ira juvenil de seu narrador, que foi o que chocou inicialmente o público. Aliado a isso, a oralidade expressiva e volúvel de alguém que não consegue se definir, e está indo em uma direção, com rodeios, confusões e mudanças súbitas de humor, provavelmente caracterizam o que existe de mais complexo na composição do livro. (E infelizmente preciso fazer um parêntese para ressaltar que no campo da linguagem a tradução brasileira é uma droga! Com uso de expressões “abrasileiradas” e outras afrontas ao texto original). 
Holden Caulfield
E se você estava pensando que eu não iria contar o enredo, pode respirar aliviado. A história conta as desventuras de Holden Caulfield, um jovem nos últimos anos do ensino médio (equivalente no Brasil) e que acaba de ser expulso de sua escola. Ele precisa voltar para casa, mas antes disso ele prefere se esconder de todos que conhece, e tentar, ao seu modo, fugir das consequências. Mas durante a narração percebemos que ser expulso é apenas a ponta do iceberg. Holden é marcado pela perda de um irmão, somado com outros problemas implícitos na obra, que provavelmente são o motivo para o autor escolher o misterioso título O apanhador no campo de centeio. Em algum momento da obra, Holden e sua irmão (que é uma importante personagem embora apareça pouco, e que ele descreve com uma idade, mas provavelmente é um pouco mais velha) conversam sobre o porquê dele estar “tão perdido” e ele cita um poema que poderia explicar o título. Mas a verdade é mais profunda do que um simples complexo de Peter Pan, e trata-se, na minha opinião, de um sentimento de culpa, que o faz querer voltar eternamente no tempo em que ele poderia salvar alguém. Mas esse sou eu, claro. Além da irmã, um irmão mais novo é citado sempre na obra, como uma lembrança especial.
E embora eu tenha me tocado que essa resenha já ficou enorme, e que eu não disse dez por cento do que gostaria, terminarei dizendo: leia esse livro. É uma história densa e profunda, muito diferente da maioria dos chamados “livros para adolescentes”. É preciso ler com calma e se possível reler, para compreender toda dimensão do personagem. E caso você decida ler esse livro para tentar entender porque tantos assassinos famosos o citam como espiração, desista, o motivo não está claro (esse é um trabalho para os caçadores “babacas” de mensagens subliminares), e provavelmente é fruto só da cabeça deturpada dos assassinos.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Os ratos sublimes – resenha de Ratos e Homens, de Steinbeck




Para abrir as minhas resenhas sobre clássicos, escolhi uma das histórias mais tocantes que já li, e talvez uma das mais belas. É verdade que quando falamos em clássicos imaginamos obras que estão separadas de nós por pelo menos um século de distância, mas não é preciso recuar aos tempos do “vossemecê” para se encontrar um desses grandes livros. E nem precisa o livro ser “grande” no sentido mais literal da palavra. Existem clássicos que são “pequenos”, do tamanho que se pode ler em uma sentada, sendo que alguns deles foram escritos ainda ali, no século XX. É o caso da obra Ratos e homens (L&PM, 2011), do ganhador do Prêmio Nobel de 1962, o americano John Steinbeck.
Com uma variação de páginas que pode ir de 90 até 140 páginas dependendo da diagramação e do tipo de edição, Ratos e homens se tornou desde sua primeira publicação uma obra célebre. Além de tornar seu autor mais conhecido no cenário literário, arrebanhando mais leitores, a obra conseguiu combinar com maestria o estilo e a técnica de um escritor maduro, visível no narrador, com a forma coloquial da fala, mais precisamente o estilo caipira, presente em cada dialogo do romance, o que por si só foi uma grande prova de domínio estilístico. Mas vamos parar de palavrório, e ir ao ponto:
O romance se passa durante a depressão econômica dos anos 1920 nos EUA, e contam a história de dois amigos que, no mínimo, são bastante incomuns. Trata-se pois de um homem baixo, com uma ligeira familiaridade com os roedores que batizam o título, mas que é dotado de um cérebro incomum para homens com seu nível de instrução, e seu companheiro, um gigante assustador, mas que tem um coração e uma mente infantis. Juntos, esse exemplo de contraste, formam uma amizade de toda incomum, enquanto viajam pelo país em procura de emprego nas grandes fazendas do interior americano. 
John Steinbeck 
George – o cara de rato – até levaria uma vida mais fácil devido a sua astucia, se não fosse seu enorme amigo, Lennie, que por ter uma cérebro de criança e uma força de Golias, está sempre causando confusão e metendo os dois em sérios problemas. Mas, entre um tragicomédia e outra, eles conseguem juntar algum dinheiro, e vão sonhando em realizar um sonho: serem donos de uma pequena propriedade rural, uma terrinha simples, mas que seja deles. E no caminho desse sonhos, eles são levados até uma fazenda da Califórnia, onde suas vidas e a vida de outros peões dão início ao conflito do romance, pois muita dor separa os dois amigos de seu sonho.
Para começar, o filho do dono da fazenda gosta de desafiar os grandões, enquanto sua jovem esposa adora cair nas graças dos peões da fazenda, e logo Lennie se vê alvo de uma dupla bastante malévola. Mas nesse meio tempo, os dois amigos conheceram outros homens como eles, como o velho capaz, que já raquítico e fraco, está disposto a colocar todas as suas economias no sonho dos amigos. E o cavalariço negro, que em plena era da segregação racial americana encontra nos estranhos amigos um vislumbre para sua felicidade.
Assim, essa história se torna, antes de tudo, uma história sobre os sonhos humanos, e a brutalidade do mundo em que vivemos, Uma história sobre como coisas frágeis e belas tendem a ser despedaçadas por uma realidade apática e materialista, que reduz homens, como insinua o título, à ratos. Mas é também uma história sobre a solidão humana. Sobre como homens sem nenhuma esperança se encontram, e como buscamos, em iguais, e em cada réstia longínqua de sonhos, nos tornar completos. E nesse sentido, o livro é atemporal.

É uma das histórias mais tocantes que já li, e embora não tenha me levado às lágrimas, não me manteve apático, longe disso! Steinbeck é um ótimo criador de tipos, e em seus personagens encontramos vida e vigor, sendo impossível não se apaixonar. E embora o destino não vá ser clemente com a dupla de amigos, em sua tragédia nós, os leitores, encontramos aquela que talvez seja a mais sublime catarse de todas: a lembrança de que não é o mundo, mas os sonhos que fazem os homens. 

domingo, 9 de março de 2014

Anatomia dos clássicos



Somente depois de escrever esse título eu me dei conta do quando ele é pretensioso. Mas, em minha defesa, digo que a tarefa que me coube é igualmente pretenciosa: escrever uma introdução para um especial de clássicos no blog. Me deu até um friozinho na espinha, para falar a verdade, e enquanto eu vou enchendo linhas para ganhar tempo, me ocorre que críticos e teóricos literários do mundo inteiro se debatem sobre essa questão há muito tempo, sem terem chegado em um consenso em absoluto. Logo, não tenho certeza que posso contribuir muito para esse campo, principalmente porque com pouco mais de duzentos livros lidos na vida ainda sou um leitor amador. Em todo caso, tarefa dada é tarefa cumprida, então seja o que Deus quiser...
A primeira coisa que me ocorre quando falo em clássicos é a divisão que isso provoca nos leitores. Enquanto alguns julgam os clássicos os livros mais sérios e criteriosos que existem, outros o consideram sumamente difícil e de acesso complexo – para alguns até algo obsoleto. Assim existe uma divisão entre leitura chamada “best-seller” e leitura de clássicos.
Mas eu não enxergo tão preto no branco essa divisão. Em primeiro lugar porque o termo “best-seller” é empregado por muitos leitores como algo pejorativo, tido como literatura de segunda categoria. Mas, esses intransigentes não levam em conta que muitos clássicos foram em seu tempo verdadeiros best-sellers: Os miseráveis, de Victor Hugo, por exemplo, venderam milhares de cópias só nos seus primeiros meses de publicação, tendo sido um fenômeno literário digno de Harry Potter ou Crepúsculo. E se não for o bastante, foi um livro que muitos críticos chamaram de subliteratura (Dostoievski, por exemplo – apesar de Tolstói ter amado o livro).
Em contrapartida, atualmente muitos livros e autores bons se tornam best-sellers, e podemos atribuir isso ao seu talento, não as leis de mercado. É o caso do Saramago, ou do Rubem Fonseca aqui no Brasil. E quanto a linguagem difícil, e tal, é importante lembrar que as obras clássicas foram escritas em um tempo diferente do nosso, onde a linguagem não era difícil. E, pesando tudo isso, eu realmente creio que não existam livros difíceis, mas leitores despreparados (tirando os livros de James Joyce, Marcel Proust, Guimarães Rosam William Faulkner e Thomas Mann, claro), enquanto outros autores clássicos possuem uma linguagem extremamente acessível sim, como Kafka, Hemingway e F. Scott Fitzgerald por exemplo.
Ítalo Calvino 
Mas o que determina que os livros desses autores venham a receber o tão celebrado peso de um clássico? Ítalo Calvino (e tenho certeza que muitos pensaram que eu usaria esse livro como base, afinal, ele é um clássico da teoria literária) em sua obra Por que ler os clássicos (Cia. das Letras, 2007), defende que um clássico pode ser lido por leitores de todos os tempos, e por mais que as condições sociais, religiosas, costumes e afins mudem, o leitor de todos os tempos sempre irá encontrar no clássico algo que lhe fale diretamente em sua vida. Isso quer dizer que um clássico é um livro que, acima de tudo, é atemporal, e pode ser lido em qualquer tempo com algo de imediato ao leitor. Ao mesmo tempo, para continuar sendo lido (e relido!) é importante que ele tenha sempre algo novo para dizer, por mais conhecida que seja a história, mesmo para alguém que já o leu. Assim, Calvino defende um clássico como um livro que jamais termina de dizer o que tem para dizer. É algo que sempre se renova. Outro ponto importante, é que o clássico é universal, ou seja, todos conhecem, e ainda assim extremamente pessoal, porque cada leitor tira de um clássico uma medida diferente. Assim, existe um livro que pode sim ser um clássico apenas para mim, enquanto pode haver outro clássico que eu odeio (particularmente eu e os clássicos brasileiros não nos damos bem, mas isso é uma herança dos meus tempos de escola).
C. S. Lewis
C. S. Lewis, em outro livro fantástico chamado Uma experiência na crítica literária (Unesp, 2009), defende que o que determina o valor de um livro é primeiro o modelo de leitor. Assim, um livro que nós não gostamos ou achamos difícil, provavelmente é resultado de nossas expectativas e gostos sobre o livro, sendo que o ideal para se ler um livro de verdade é lê-lo sem preconceito e sem desejos, é deixar que o livro conduza o leitor, que o livro exija o que pretende do leitor, e que o leitor cobre apenas isso do livro. Assim, o problema da dificuldade nos clássicos pode residir em nossa forma de ler. Mas o nessa mesma obra, Lewis defende que um valor de um livro é determinado pela capacidade que um livro tem de tocar seus leitores, e por isso um best-seller do pior tipo pode vir a se tornar um clássico pessoal para mim.
Mas para fechar o assunto, pensemos em quantos livros foram publicados nos tempos de Machado de Assis, Victor Hugo, Tolstói, Hemingway, e quantos dos autores contemporâneos desses grandes nomes nós conhecemos hoje. Muitos poucos. E mesmo de alguns nomes cujos livros sobreviveram, apenas uma parcela de suas obras ainda é lida. Isso porque o tempo é sim o maior dos juízes, e por isso um clássico é uma obra cujo conteúdo humano, cuja verdade, cuja beleza, cujos traços são tão fortes, que irão sobreviver ao tempo e habitar seus leitores em todas as épocas, como parte do imaginário e do conhecimento humano. Assim, o verdadeiro clássico é aquele que é, antes de tudo, humano, e partilha dos sentimentos, sonhos, medos, carências, e problemas do homem enquanto houver humanidade.



Está feito! Não foi tão difícil, mas também não foi um passeio no parque. E se você é do tipo de leitor que só encara clássicos, ou que quer começar a caminhar por essas veredas, confira ao longo dessas três semanas que restam de Março nossos posts especiais, com resenhas, críticas, e curiosidades.

Até.