domingo, 22 de março de 2015

Saramago e a distopia do presente – Resenha de A Caverna



O próprio José Saramago sempre se reconheceu como um ensaísta que seguiu pelo caminho errado, e em suas andanças pelas palavras acabou se tornando um romancista, e, ironicamente (ou não), dos bons. O comitê do Nobel que o diga. Em todo caso, seu espirito ensaístico fez com que seu olhar sobre a história – e nos últimos anos principalmente sobre a história recente, fosse sempre crítico, ácido, minucioso e, muito frequentemente, filosófico. Disso nasceu dois traços fundamentais de sua obra, o primeiro, a natureza nem um pouco fofa de seus escritos, motivo pelo qual o autor é conhecido em Portugal, muito merecidamente, como “sal amargo” (esses trocadilhos portugueses...); e a segunda característica, muito mais relevante, que é a que concerne ao seu estilo, que qualquer leitor de primeira viagem saramaguiano sabe do que estou falando: a estrutura propriamente dita de sua prosa, com uma pontuação e paragrafação peculiar, além da construção do narrador, sempre o mesmo, sempre uma projeção da criticidade do próprio Saramago. Uma prosa, que como o próprio autor explica, nasceu de seus pensamentos para ser reproduzida em voz alta. E é justamente nesses termos que encontramos a obra que talvez seja a mais contemporânea do autor, A Caverna (Companhia das Letras, 2002).
Densa, pesada, irônica, simbólica, ácida, são alguns dos adjetivos que se pode atribuir a obra. Entretanto, se você não é um leitor de primeira viagem na linguagem saramaguiana, você irá perceber que é um livro que flui relativamente fácil comparado com outras obras do autor. Em parte isso se deve a própria história, que é menos filosofada e mais contada. Além de ser muito mais atual.
José Saramago
Saramago em A Caverna, faz uma recontagem do mito da caverna que aparece na literatura pela primeira vez na boca de Sócrates e através da pena de Platão, lá na Grécia Antiga. No mito original, temos homens acorrentados em uma caverna, sem conseguir sair e que contemplam sombras na parede a sua frente, as quais tomavam por realidade. Na versão de Saramago, entretanto, o homem está livre e, que ironia, quer entrar na caverna. Essa metáfora é aplicada de uma forma bem kafkiana para retratar o consumismo e o desejo moderno de cada vez mais se tornar dependente de coisas para se tornar “uma pessoa real”, como se a felicidade e a vida plena fossem frutos de bens materiais e muitas vezes artificiais. Esse conflito é encarnado pela imagem de um mega centro comercial, que controla a economia de toda uma região no livro. O personagem principal, um simples oleiro, se descobre no momento mais negro de sua vida quando o centro decide não comprar mais seus produtos, pois o barro está sendo substituído pelo plástico. E enquanto tenta se adaptar para não ser esmagado (algo que o capitalismo adora fazer com tudo o que julga obsoleto e fora de moda), o oleiro irá enfrentar todas as questões existenciais de nosso tempo e fazer uma profunda análise da pós-modernidade. (Ler A Caverna à luz de Bauman, por exemplo, é uma experiência intelectual incrível).
Esse romance que possui muitos elementos distópicos é encarado pelo autor como uma alegoria do mundo moderno, um mundo onde os laços humanos tem sido podados em função da coisificação planetária e cada vez mais a indiferença e a brevidade se tornam tendências universas.  Capaz de arrancar lágrimas (quem não ficou indignado com o destino de Achado?), de levar a reflexão profunda (acredite, é impossível sair ileso desse romance), e com uma terrível tendência para se tornar cada vez mais atual, A Caverna é talvez o melhor romance da segunda faze do autor e foi uma das melhores leituras que eu tive o prazer de realizar em 2014. Ler A Caverna é ler o mundo onde estamos, indispensável para qualquer leitor crítico.