sexta-feira, 14 de março de 2014

Os ratos sublimes – resenha de Ratos e Homens, de Steinbeck




Para abrir as minhas resenhas sobre clássicos, escolhi uma das histórias mais tocantes que já li, e talvez uma das mais belas. É verdade que quando falamos em clássicos imaginamos obras que estão separadas de nós por pelo menos um século de distância, mas não é preciso recuar aos tempos do “vossemecê” para se encontrar um desses grandes livros. E nem precisa o livro ser “grande” no sentido mais literal da palavra. Existem clássicos que são “pequenos”, do tamanho que se pode ler em uma sentada, sendo que alguns deles foram escritos ainda ali, no século XX. É o caso da obra Ratos e homens (L&PM, 2011), do ganhador do Prêmio Nobel de 1962, o americano John Steinbeck.
Com uma variação de páginas que pode ir de 90 até 140 páginas dependendo da diagramação e do tipo de edição, Ratos e homens se tornou desde sua primeira publicação uma obra célebre. Além de tornar seu autor mais conhecido no cenário literário, arrebanhando mais leitores, a obra conseguiu combinar com maestria o estilo e a técnica de um escritor maduro, visível no narrador, com a forma coloquial da fala, mais precisamente o estilo caipira, presente em cada dialogo do romance, o que por si só foi uma grande prova de domínio estilístico. Mas vamos parar de palavrório, e ir ao ponto:
O romance se passa durante a depressão econômica dos anos 1920 nos EUA, e contam a história de dois amigos que, no mínimo, são bastante incomuns. Trata-se pois de um homem baixo, com uma ligeira familiaridade com os roedores que batizam o título, mas que é dotado de um cérebro incomum para homens com seu nível de instrução, e seu companheiro, um gigante assustador, mas que tem um coração e uma mente infantis. Juntos, esse exemplo de contraste, formam uma amizade de toda incomum, enquanto viajam pelo país em procura de emprego nas grandes fazendas do interior americano. 
John Steinbeck 
George – o cara de rato – até levaria uma vida mais fácil devido a sua astucia, se não fosse seu enorme amigo, Lennie, que por ter uma cérebro de criança e uma força de Golias, está sempre causando confusão e metendo os dois em sérios problemas. Mas, entre um tragicomédia e outra, eles conseguem juntar algum dinheiro, e vão sonhando em realizar um sonho: serem donos de uma pequena propriedade rural, uma terrinha simples, mas que seja deles. E no caminho desse sonhos, eles são levados até uma fazenda da Califórnia, onde suas vidas e a vida de outros peões dão início ao conflito do romance, pois muita dor separa os dois amigos de seu sonho.
Para começar, o filho do dono da fazenda gosta de desafiar os grandões, enquanto sua jovem esposa adora cair nas graças dos peões da fazenda, e logo Lennie se vê alvo de uma dupla bastante malévola. Mas nesse meio tempo, os dois amigos conheceram outros homens como eles, como o velho capaz, que já raquítico e fraco, está disposto a colocar todas as suas economias no sonho dos amigos. E o cavalariço negro, que em plena era da segregação racial americana encontra nos estranhos amigos um vislumbre para sua felicidade.
Assim, essa história se torna, antes de tudo, uma história sobre os sonhos humanos, e a brutalidade do mundo em que vivemos, Uma história sobre como coisas frágeis e belas tendem a ser despedaçadas por uma realidade apática e materialista, que reduz homens, como insinua o título, à ratos. Mas é também uma história sobre a solidão humana. Sobre como homens sem nenhuma esperança se encontram, e como buscamos, em iguais, e em cada réstia longínqua de sonhos, nos tornar completos. E nesse sentido, o livro é atemporal.

É uma das histórias mais tocantes que já li, e embora não tenha me levado às lágrimas, não me manteve apático, longe disso! Steinbeck é um ótimo criador de tipos, e em seus personagens encontramos vida e vigor, sendo impossível não se apaixonar. E embora o destino não vá ser clemente com a dupla de amigos, em sua tragédia nós, os leitores, encontramos aquela que talvez seja a mais sublime catarse de todas: a lembrança de que não é o mundo, mas os sonhos que fazem os homens. 

domingo, 9 de março de 2014

Anatomia dos clássicos



Somente depois de escrever esse título eu me dei conta do quando ele é pretensioso. Mas, em minha defesa, digo que a tarefa que me coube é igualmente pretenciosa: escrever uma introdução para um especial de clássicos no blog. Me deu até um friozinho na espinha, para falar a verdade, e enquanto eu vou enchendo linhas para ganhar tempo, me ocorre que críticos e teóricos literários do mundo inteiro se debatem sobre essa questão há muito tempo, sem terem chegado em um consenso em absoluto. Logo, não tenho certeza que posso contribuir muito para esse campo, principalmente porque com pouco mais de duzentos livros lidos na vida ainda sou um leitor amador. Em todo caso, tarefa dada é tarefa cumprida, então seja o que Deus quiser...
A primeira coisa que me ocorre quando falo em clássicos é a divisão que isso provoca nos leitores. Enquanto alguns julgam os clássicos os livros mais sérios e criteriosos que existem, outros o consideram sumamente difícil e de acesso complexo – para alguns até algo obsoleto. Assim existe uma divisão entre leitura chamada “best-seller” e leitura de clássicos.
Mas eu não enxergo tão preto no branco essa divisão. Em primeiro lugar porque o termo “best-seller” é empregado por muitos leitores como algo pejorativo, tido como literatura de segunda categoria. Mas, esses intransigentes não levam em conta que muitos clássicos foram em seu tempo verdadeiros best-sellers: Os miseráveis, de Victor Hugo, por exemplo, venderam milhares de cópias só nos seus primeiros meses de publicação, tendo sido um fenômeno literário digno de Harry Potter ou Crepúsculo. E se não for o bastante, foi um livro que muitos críticos chamaram de subliteratura (Dostoievski, por exemplo – apesar de Tolstói ter amado o livro).
Em contrapartida, atualmente muitos livros e autores bons se tornam best-sellers, e podemos atribuir isso ao seu talento, não as leis de mercado. É o caso do Saramago, ou do Rubem Fonseca aqui no Brasil. E quanto a linguagem difícil, e tal, é importante lembrar que as obras clássicas foram escritas em um tempo diferente do nosso, onde a linguagem não era difícil. E, pesando tudo isso, eu realmente creio que não existam livros difíceis, mas leitores despreparados (tirando os livros de James Joyce, Marcel Proust, Guimarães Rosam William Faulkner e Thomas Mann, claro), enquanto outros autores clássicos possuem uma linguagem extremamente acessível sim, como Kafka, Hemingway e F. Scott Fitzgerald por exemplo.
Ítalo Calvino 
Mas o que determina que os livros desses autores venham a receber o tão celebrado peso de um clássico? Ítalo Calvino (e tenho certeza que muitos pensaram que eu usaria esse livro como base, afinal, ele é um clássico da teoria literária) em sua obra Por que ler os clássicos (Cia. das Letras, 2007), defende que um clássico pode ser lido por leitores de todos os tempos, e por mais que as condições sociais, religiosas, costumes e afins mudem, o leitor de todos os tempos sempre irá encontrar no clássico algo que lhe fale diretamente em sua vida. Isso quer dizer que um clássico é um livro que, acima de tudo, é atemporal, e pode ser lido em qualquer tempo com algo de imediato ao leitor. Ao mesmo tempo, para continuar sendo lido (e relido!) é importante que ele tenha sempre algo novo para dizer, por mais conhecida que seja a história, mesmo para alguém que já o leu. Assim, Calvino defende um clássico como um livro que jamais termina de dizer o que tem para dizer. É algo que sempre se renova. Outro ponto importante, é que o clássico é universal, ou seja, todos conhecem, e ainda assim extremamente pessoal, porque cada leitor tira de um clássico uma medida diferente. Assim, existe um livro que pode sim ser um clássico apenas para mim, enquanto pode haver outro clássico que eu odeio (particularmente eu e os clássicos brasileiros não nos damos bem, mas isso é uma herança dos meus tempos de escola).
C. S. Lewis
C. S. Lewis, em outro livro fantástico chamado Uma experiência na crítica literária (Unesp, 2009), defende que o que determina o valor de um livro é primeiro o modelo de leitor. Assim, um livro que nós não gostamos ou achamos difícil, provavelmente é resultado de nossas expectativas e gostos sobre o livro, sendo que o ideal para se ler um livro de verdade é lê-lo sem preconceito e sem desejos, é deixar que o livro conduza o leitor, que o livro exija o que pretende do leitor, e que o leitor cobre apenas isso do livro. Assim, o problema da dificuldade nos clássicos pode residir em nossa forma de ler. Mas o nessa mesma obra, Lewis defende que um valor de um livro é determinado pela capacidade que um livro tem de tocar seus leitores, e por isso um best-seller do pior tipo pode vir a se tornar um clássico pessoal para mim.
Mas para fechar o assunto, pensemos em quantos livros foram publicados nos tempos de Machado de Assis, Victor Hugo, Tolstói, Hemingway, e quantos dos autores contemporâneos desses grandes nomes nós conhecemos hoje. Muitos poucos. E mesmo de alguns nomes cujos livros sobreviveram, apenas uma parcela de suas obras ainda é lida. Isso porque o tempo é sim o maior dos juízes, e por isso um clássico é uma obra cujo conteúdo humano, cuja verdade, cuja beleza, cujos traços são tão fortes, que irão sobreviver ao tempo e habitar seus leitores em todas as épocas, como parte do imaginário e do conhecimento humano. Assim, o verdadeiro clássico é aquele que é, antes de tudo, humano, e partilha dos sentimentos, sonhos, medos, carências, e problemas do homem enquanto houver humanidade.



Está feito! Não foi tão difícil, mas também não foi um passeio no parque. E se você é do tipo de leitor que só encara clássicos, ou que quer começar a caminhar por essas veredas, confira ao longo dessas três semanas que restam de Março nossos posts especiais, com resenhas, críticas, e curiosidades.

Até.

sexta-feira, 7 de março de 2014

No corredor da morte – resenha de À espera de um milagre

Capa da edição anterior, com poster do filme


Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao senhor Stephen King por me fazer chorar litros de lágrimas como uma criança cujo doce foi roubado. E não estou falando de lágrimas ocasionais, silenciosas, escorrendo numa boa, mas sim em uma torrente, com direito a soluços e tudo. Na verdade a coisa foi tão violenta que eu tive que, faltando dez páginas para acabar o livro, parar a leitura e chorar tudo de uma vez, para conseguir lavar o rosto e voltar a ler. É meus amigos, esse é o efeito de À espera de um milagre (Objetiva, 2005), do mestre do terror, que nesse livro quis provar que é antes um mestre do fantástico do que do terror.
Em segundo lugar, preciso perguntar: mas de onde desencavaram esse título em português? O original The green mille nunca nem foi cogitado como título no Brasil, e olha que antes o livro foi publicado por aqui com o nome de O corredor da morte. Se bem que, convenhamos, o título definitivo ficou bem legal, talvez até mais que do original, que só faz sentido para quem lê o livro, e com atenção.

Mestre Stephen King
 E digo ainda: esse é de longe o melhor livro escrito pelo King, e não digo isso só pela história, afinal, apesar de o titio Stephen não ser considerado um “escritor sério”, mas sim um “autor de massa e de histórias de subliteratura”, a verdade é que quando se trata de criar enredo, personagens e tramas ele faz isso magistralmente sim. Com personagens que irão se tornar ícones e sobreviver por décadas, quiçá séculos, no coração e nas mentes dos leitores (ó! Nada como uma declaração clichê para embelezar a defesa de um escritor popular). Enfim, o fato é que ele sabe sim criar enredos muito bem amarrados, que prendem o leitor, são diferentes, e originais. E apesar disso, não é por essa razão que esse é o melhor livro dele para mim.
O fato é que ele escreveu com muito mais cuidado, e a linguagem e a estética ficou muito mais acabada que nos outros livros. O personagem narrador é marcante, ele fala com muita propriedades, trejeitos, e opiniões que fazem dele quase alguém real. Existe uma poética que normalmente falta na prosa de autores de fantasia, e a história segue caminhos complexos da narrativa, como a não linearidade, onde o autor vai contando por reminiscências o ocorrido. Nota dez para o titio Stephen aqui.
Quanto a história, acho que não preciso falar muito, pois todos, mesmo quem não assistiu o filme nem leu o livro a conhecem. O livro conta sobre um personagem enigmático chamado John Coffey (nome muito parecido com João Café em português), um negro absurdamente alto, com músculos ridiculamente bombados, e com uma personalidade, no mínimo, exótica. Em miúdos: o cara grandão chora o tempo todo e tem medo de escuro. Seria cômico, não? Mas nem de longe nosso personagem é alguém fofo, na verdade ele está no corredor da morte por ter estuprado e assassinado duas menininhas indefesas. Isso ao menos supostamente. E se tudo isso já não fosse bem peculiar, John Coffey ainda tem mãos mágicas (sem trocadilhos). Com um toque ele é capaz de competir com muitos pastores pentecostais e curar qualquer doença, mas com muito mais charme.

Michael Clarke Duncan interpretando John Coffey 

A história é contada por Paul Edgecomb, que por muitos anos foi o chefe dos guardas no corredor da morte. E além dele, outros personagens passam pelo livro, como o fabulo (e responsável por metade de minhas lágrimas) Sr. Guizos (ou Mr. Jingles para quem só assistiu o filme), que é talvez o ratinho mais esperto de toda ficção universal. Ao longo da trama, vamos descobrindo mais sobre Coffey, e os difíceis dias antes de sua execução, onde os guardas precisam lidar com aquele que talvez seja o maior enigma de suas vidas.

Agora, para falar do filme, acho que sua melhor qualidade é ser bem fiel ao livro, com algumas mudanças, o que é natural, mas que segue bem próximo a linha do livro. (Ainda assim, o filme é bom, enquanto o livro é perfeito). O diretor já trabalhou com várias adaptações da obra de King, incluindo Um sonho de liberdade, que é um de meus filmes favoritos. Recebeu várias indicações ao Oscar, embora não tenha recebido nenhuma. Mas, se você tem três horas disponíveis, e quer gastar com um bom filme, assista. Vale a pena, afinal é sempre mágico ver seus personagens ganharem vida (principalmente o Sr. Guizos), sem falar que Tom Hanks está em uma de suas melhores interpretações. 

A nova capa do livro: