Existe uma expressão muito comum em
literatura que se refere a algo com um forte teor de sofrimento dramático como
“um romance russo”. Isso porque nenhuma outra literatura captou tão bem as
nuances do sofrimento como a literatura russa, com sua força aterradora e sua
sutiliza fria. Mas, como Anton Tchekhov nunca escreveu um romance, vamos
adaptar o termo recorrente para o estilo no qual Tchekhov foi um mestre: o
conto.
Em O
assassinato e outras histórias (Editora Abril, 2010), todos os elementos
que consagraram o autor russo como um dos mais significativos escritores da
literatura mundial veio à tona. A seleção de história (feita pelo tradutor),
remete à última fase da produção do autor russo, por isso os contos são mais
longos e mais pausados. Apesar de mais extensos que os trabalhos da época de A dama do cachorrinho que lhe
imortalizaram, os contos desta antologia não fogem em absoluto da complexa
estrutura estética de um original tchekhoviano. Com vozes que invocam o tempo
do autor, ele desfila uma série de dramas sociais, que vão desde os pequenos
burgueses, como no conto que abre a coletânea, O professor de letras, até as classes mais baixas, os mujiques, nos
contos mais terríveis e ao mesmo tempo belos, tal qual o último conto No fundo do barranco.
Anton Tchekhov |
É importante dizer que Tchekhov não é um
autor de histórias prontas. Seus enredos vão sendo trabalhados sutilmente
durante o desenvolver da trama, e com isso Tchekhov “sugere” muitas
possibilidades subtendidas na trama. Daí a textura dos contos no melhor sentido
da expressão. Histórias com personagens complexas, que vão se revelando e
modificando aos poucos, ou, quando não sofrem essas mudanças, são estraçalhadas
pelo peso da realidade. É preciso ler cada conto por camadas, e ir retirando seus
sentidos aos poucos, buscando aquilo que o autor ocultou em seu corpo. Somente
assim, toda ironia, toda crítica social e toda poética tchekhoviana é revelada
ao leitor. Muitas vezes, como em O
assassinato, que conta a história de dois primos, sendo que um perdeu tudo
por causa de uma amante, mas o outro é um espertalhão que retêm a herança de
ambos, que aos poucos vão interferindo nas vidas um do outro, até se tornarem
insuportáveis as raias da loucura, o narrador estende a narração para depois
que o conflito principal terminou. Assim, tendo ocorrido o clímax, a história
ainda persiste, revelando a sua verdadeira face.
Tchekhov partilhou da mesma simpatia
pelos “humilhados e ofendidos” que Dostoievski, e escreveu muito sobre isso,
tanto dentro quanto fora da ficção. Deste modo, um dos pontos que mais chamam
atenção em seu trabalho, é que ele foi um escritor profundamente engajado com
as questões sociais, em um período que antecede ao conceito de literatura
engajada, que só nasceria próximo a metade do século XX com Sartre.
Assim, Tchekhov foi um homem a frente de
seu tempo, e mais que isso, foi responsável por influenciar toda literatura do
século que viria, ao ponto de ser chamado como “o pai do conto moderno”, por
muitos autores. Alguns, como nosso Rubem Fonseca, não escondem sua influência
em sua formação como leitores e posteriormente como escritores. Leitura
obrigatória, O assassinato e outas
histórias é um dos livros mais densos, ainda que possua uma narrativa leve,
mais sutil, belo e terrível, ao mesmo tempo que faz o leitor se apaixonar desde
seu primeiro conto, que já foi escrito.
Capa edição Cosac Naify: