terça-feira, 27 de agosto de 2013

A flor da Inglaterra de George Orwell



Orwell é famoso entre os leitores brasileiros por 1984 e A revolução dos bichos. Não é para menos. As duas obras estão entre as cem obras mais aclamadas do Século XX, em várias listas literárias importantes. Mas, não é preciso falar que não são os únicos trabalho do autor inglês, conhecido por sua convicção inabalável naquilo que acreditava. Marxista e militante de esquerda ferrenho, participou de várias incursões por seus ideias, indo desde conflitos armados até posicionamentos extremamente pessoais. E é em seu livro, menos conhecido, mas igualmente notório, A flor da Inglaterra (Keep the aspidistra flying) que ele ataca diretamente o centro da filosofia capitalista inglesa.
Publicado em 1936, o livro apresenta ao leitor um protagonista digno de um personagem de Dostoievski. Gordon Comstock é um aspirante à poeta e um verdadeiro  Raskólnikov orwelliano (detalhe, “orwelliano” é uma palavra da língua portuguesa, cunhada com base nas obras de Orwell, e normalmente remetem a estados totalitários ou personagens esmagados pelo sistema hermético), sua personalidade, assim como a do protagonista de Crime e castigo é para lá de complexa, mudando no decorrer da narração do detestável para o odioso e finalmente para o ignóbil. Um verdadeiro anti-herói do submundo de Londres, cujo único objetivo na vida é lutar contra o dinheiro.
Exatamente, o dinheiro!, e tudo o que ele representa – que no livro é retratado na figura da aspidistra, planta comum nas casas de classe média britânicas, que simbolizam a mediocridade da vida burguesa – fugindo das imposições sociais que visão moldar e decepar a autonomia do sujeito.
George Orwell
Vive então entre a hipocondria e a misantropia, fechado numa atmosfera febril e não sem alguns delírios. Ao longo da narrativa, vai mudando de casas que vão de em péssimas condições para inabitáveis, enquanto suas roupas deterioram e ele fica sem folhas de papel para escrever. Ainda assim, persiste em sua luta contra o sistema, ignorando os apelos de sua namorada e seu melhor (único) amigo. Personagens estes, que muito lembram os demais heróis do romancista russo (ah! Gordon também tem uma irmã!).
Mas o parentesco com os russos (que sempre acabam de algum modo como temas das obras de Orwell), não é acidental. Assim como Raskólnikov era uma crítica a juventude dos tempos de Dostoiévski, Gordon é uma sátira extremamente ácida dos conceitos capitalistas do tempo de Orwell. E não é só essa a semelhança. Na verdade o romance está recheado de alusões ao Crime e Castigo, o próprio perfil dos personagens lembram isso: o anti-herói hipocondríaco e com uma personalidade instável que no final consegue se redimir, o amigo do herói que apesar de seu comportamento não o abandona, a irmã que se sacrifica incondicionalmente pelo amigo e a mulher tão pura de coração que o ama apesar de Gordon ser um ranzinza patológico.

Entretanto, apesar do parentesco com o romance do escritor russo, A flor da Inglaterra é uma sátira envolvente e densa, repleta de humor negro que, da melhor forma, faz o leitor rir e se chocar. 


            O dinheiro é o que Deus já foi. O bem e mau não significam mais nada, a não ser fracasso ou sucesso. (...) O decálogo fora reduzido a dois mandamentos. Um para os patrões – os eleitos, a casta sacerdotal do dinheiro, por assim dizer, – “ganharás dinheiro”; e outro para os empregados – seus escravos e subordinados, – “Não perderás o teu emprego”.
            - George Orwell. A flor da Inglaterra.



Outras capas:
Foi lançado no Brasil também sob o título de Mantenha o Sistema. Edição Itatiaia Editora

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Histórias invisíveis



Existem livros que transcendem todas as classificações. Quando postos em análise é muito difícil determinar em qual estrutura ela esse encaixa. Isso porque seu autor, de alguma forma, conseguiu construir uma estrutura tão complexa ou tão inovadora que desafia os padrões da teoria. É o caso do “romance” As cidades invisíveis (Cia das letras, 2010), do italiano Ítalo Calvino.
Quando comecei a lê-lo, confesso, que não esperava muita coisa. Na verdade, eu havia lido há algum tempo as primeiras páginas, e ele me pareceu um daqueles romances intelectualóides, difíceis de ler e que, a menos que você seja um semiótico com um doutorado, não conseguiria ler muitas páginas sem pegar no sono. E, meu Deus, felizmente, como eu me enganei!
O livro flui em uma velocidade adorável, onde, apesar das descrições sucessivas, conserva muita movimentação e, o que é incrível, mesmo as descrições conseguem prender o leitor, porque mesmo tratando apenas de descrever imagens de cidades, consegue fazer isso de um modo tão original e de um ângulo tão forte, que o leitor é transportado para as cidades fantásticas que Calvino descreve. Os capítulos são todos curtos, o que aumenta o ritmo rápido da leitura. Antes de você se dar conta está preso na história, num verdadeiro frenesi.
Ítalo Calvino
Enfim, a história. O livro conta os diálogos entre o veneziano Marco Pólo e o então imperador da china Kublai Khan (o que realmente aconteceu). Nessas conversar Pólo narra ao imperador as várias cidades fantásticas que visitou em suas viagens pelo globo, sendo que a maioria delas deveria se encontrar nos territórios do próprio Khan. Todavia, como logo fica claro, descobrir quais dessas cidades são reais e quais são frutos da imaginação do narrador se torna impossível (quer dizer, dentro do universo da narrativa, porque algumas cidades são tão fantásticas que só falta surgir um leão falante para guiar criançinhas escolhidas).
Desse modo, as cidades deixam de ser apenas um espaço físico e geográfico para ganhar dimensões muito mais amplas: as cidades são metáforas. E essas metáforas tratam de assuntos que vão desde a natureza humana, desde a complexa relação dos desejos, das paixões, dos sonhos, dos medos, do amor, até os terrenos mais profundos e misteriosos como os da morte. Ao mesmo tempo, já sugeriram alguns teóricos, muitas das cidades tratam apenas da arte de contar histórias, do efeito da poética da narração sobre a mente do ouvinte e da magia da literatura.

Todavia, uma coisa é certa, o livro é uma intrincada viagem ao mundo dos símbolos. Com ares poéticos e ao mesmo tempo filosófico, Ítalo Calvino criou um universo de imagens tão belas e fortes que conseguiu transformar as narrações de Pólo para nós, os leitores de hoje, naquilo que os orientais fizeram mil anos Sherazad, onde o poder das histórias, a magia por detrás dos símbolos a própria natureza humana se entrelaçam, numa grandiosa obra de arte.

"As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa."
- CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. 

Outras capas:



sábado, 17 de agosto de 2013

Notas sobre o Oceano


Olá pessoal... não, não... Eae, gente... não, definitivamente, Oi, tudo bem?... bem original!! Começar uma resenha para (supostos) leitores é mais complicado que parece. Vamos falar de uma vez em livros então.
Meu primeiro contato com Neil Gaiman, O oceano no fim do caminho (Intrínseca, 2013), deixou um gosto ambíguo após a leitura, porque ainda não sei se gostei ou só achei legalzinha a trama. Para ficar mais claro acho que preciso recorrer a boa e velha estética literária. Existe uma verdade sobre Gaiman (ao menos nesse livro) que não se pode negar: ele escreve muito mal! (Apesar que fãs podem atribuir isso à sua tradutora), mas, entretanto, todavia, com certeza é inegável que a história te prende! Isso mesmo, se falta cuidado com a escrita (e falta muito!), a trama é realmente divertida. Existe um suspense muito bom e elementos fantásticos que te convencem, mais que isso, você consegue ler e imaginar como seria s adaptação para o cinema, porque é bem fotográfico. E o final – o que fez a leitura valer a pena – te deixa com aquele sabor nostálgico de sentimentos em conflito, junto de um melancólico vazio (um fato sobre mim: adoro vazios melancólicos). Além de tudo isso, vale a pena dizer que o livro é curto e pode ser lido em uma única tarde, sem falar que a capa é muito linda (sim, eu li o livro por causa da capa).
A história (que propõe a ser adulta) narra do ponto de vista de um garoto de sete anos (que dá ao romance mais um ar infanto-juvenil que adulto) fatos extraordinários e terríveis que acontecem com o protagonista, cujo nome não é revelado. A trama começa no presente, durante um funeral, quando o homem de meia idade e narrador saturado da obrigação social se afasta para pensar na vida. Ele é conduzido, quase que por instinto, à fazendo no fim da estrada, e com isso, ao lago no fim do caminho, ou oceano. É à margem desse lago\oceano que ele senta e com isso, por horas à fio, recobra as memórias de quando tinha sete anos.
Neil Gaiman
Tudo começa com sua família decadente, cujo estado financeiro obriga os pais do narrador a alugar o quarto do menino, que se vê obrigado a dormir com sua irmã mimada e egoísta. É uma história sobre perda, da infância e a busca da identidade em um momento de transformação (ao menos tenta ser assim), quando a vida adulta parece sufocar a vida da infância. Ninguém entende o menino apaixonado por livros, nem seu pai, e ele se vê legado ao segundo plano de sua família. O que piora quando um dos inquilinos do seu antigo quarto decide cometer suicídio dentro do carro da família.
A partir desse momento coisas estranhas começam a acontecer, fatos inexplicáveis e apavorantes. Como em um sonho, onde o narrador sonha que algo está sendo enfiado em sua boca e ao acordar, descobre que esta asfixiando-se com uma moeda. E é nessa altura da narração que as três personagens mais fantásticas surgem. As três Hempstock, filha, mãe e avó, três mulheres que vivem sozinhas na fazenda do fim da estrada e que são donas de um lago que a mais nova, supostamente entre 11 e 12 anos, Littie, por quem o narrador ganha grande afeto, chame Oceano.  O que acontece é que as três mulheres não são quem parecem. Na verdade, pertencem à um mundo mais antigo que o nosso e são donas de incríveis dons. (principalmente a avó, que é quase a Dumbledore da história, de tão foda). E é essa nova amiga, Littie, quem apresenta ao narrador a verdade sobre a realidade, levando-o até um mundo antigo e mágico, de onde um terrível mal acordou e pode por em risco o mundo inteiro.

Enfim, partindo dos olhos de uma criança, o livro explora os medos infantis mais essenciais e leva o leitor a se perguntar se realmente existem adultos no mundo, afinal, por baixo do tamanho sempre existem sentimentos e experiências que são cunhadas na infância e responsáveis por determinar quem seremos por toda a vida. Um convite encantador, sim, à reflexão, com muitos pontos líricos e símbolos dessa infância em conflito. Em termos de literatura fantástica, posso dizer que, se não me tornei fã de Gaiman, ao menos passei a entender porque existe uma legião de leitores que admiram seu trabalho. O oceano no fim do caminho é uma aventura de tirar o folego, dar algum medo e, se você bobear, do tipo que te tira algumas lágrimas. Mas, mais do que tudo, é uma história sobre os horrores de ser criança muitas vezes, em um mundo onde adultos se recusam a nos ouvir.

sábado, 10 de agosto de 2013

O céu, a neve, a fome



Provavelmente uma das melhores leituras de 2013, Tudo o que tenho levo comigo (Cia das Letras, 2011), é uma obra extremamente poética e sensível, ao mesmo tempo que carrega uma carga brutal e terrível. É impossível não ser seduzido pela escrita da ganhadora do premio Nobel de 2009, Herta Müller, ainda nas primeiras páginas, onde cada frase, cada detalhe, é calculado de modo a criar um universo totalmente belo.
A história se passa no final de 1945, numa Romênia pós-guerra dominada pela União Soviética, e começa com a ordem de Stalin para que os alemães paguem pelos custos da guerra, e com isso milhares de pessoas são mandadas para campos de trabalhos (o que achei uma tremenda ironia, uma espécie de justiça poética). O protagonista é Leopol (Leo) Auberg, um garoto de 17 anos que está em pleno processo de autodescoberta, experimentando as sensações do homossexualismo. Mas, uma vez que seu prazer tenha de ser secreto (no país em que vive o homossexualismo é considerado crime, podendo ser punido com a morte), ele deseja desesperadamente chegar em um lugar onde ninguém lhe conheça e ele possa ser livre, razão pela qual, a principio, o campo de trabalhos na União Soviética não parece tão terrível. Todavia, nos cinco anos que se seguem, os horrores e a bestialidade brutal da vida subumana irá mudar sua percepção, e, com mais intensidade, irá mudar a si mesmo.
Herta Müller
É uma história delicada e terrível, narrada com uma poeticidade belíssima, que toca o leitor até pela escolha das palavras. É uma história sobre anulação, uma viagem de autodescoberta niilista que, sob os horrores da repressão, é quase uma sátira ao Bildungsroman, o romance de formação, criado pelos próprios alemães ainda no século XIX e que é uma das conquistas romanescas mais louvadas de todos os tempos. Este romance, em contrapartida, é quase um romance de “desformação”, pois nas palavras do próprio personagem-narrador, descreve a maneira como o campo de trabalhos vai apagando o elemento humano.
Entretanto, em nenhum momento o peso da história contagia a narrativa. Isso porque Müller criou uma forma de narrar tão leve quando concisa. Suas frases são curtas, chegando a tecer capítulos de um parágrafo, mas, talvez mais do que com o que conta, os silêncios da narrativa, aquilo que ela deixa subentendido nas sentenças curtas, é a verdadeira essência da história. Ao mesmo tempo, ela está sempre buscando figuras suaves para construir sua imagética: nuvens, cores, anjos; e são essas figuras que tratam dos aspectos mais terríveis dos fatos, e da onde vem a leveza do livro. O próprio personagem, Léo, é de uma delicadeza encantadora, e de suas palavras o campo ganha um melancólico tom quase romântico. Trata-se de um poderoso poema em prosa.
Um livro poderoso, que comove e cativa, que conta sobre um período negro da história, é verdade, mas conta, mais que tudo, sobre a identidade humana.

"Pequenos tesouros são aqueles em que está escrito: Aqui estou eu.
Maiores tesouros são aqueles em que está escrito: Você se lembra.
Os mais belos tesouros, porém, são aqueles em que se inscreverá: Estive aqui."

– MÜLLER, Herta. Tudo que tenho levo comigo. São Paulo: Companhia das letras, 2011; 276.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O casamento da chapeuzinho



Era uma vez, há não tanto tempo atrás, uma casa que ficava no meio de uma velha floresta, cercada por uma campina que era como um tapete vivo e um jardim com um manto colorido de flores. A casa, um sobrado amarelo, erguia-se até a copa das árvores mais baixas, e dela, uma música muito alta ecoava por todo silêncio da floresta. Talvez por isso quase não se via animais ao redor da casa, a exceção dos três grandes pitbulls que dormiam preguiçosamente na varanda. O som agudo de guitarras elétricas perfurava a paz da floresta, enquanto a moradora da casa divertia-se surfando pela internet.
A velhinha que morava sozinha naquela casa, gostava desses dias de paz e rock’in’roll, sentada na grande poltrona de couro, os pés levantados em uma pilha de almofadas e uma xícara de chá, cheia até a borda com um gelado suco de limão batizado com vodka repousada ao seu lado. No colo, o notebook aberto visualizava sua página no Facebook. Com um suspiro a boa velhinha disse:
– Que saudades da minha neta, a chapeuzinho vermelho. Bem que ela poderia me mandar ao menos um recado pelo Face. O que será que ela anda fazendo?
Nesse momento o celular em repouso ao lado da xícara na mesa começou a tocar desesperadamente. Com um movimento rápido a boa velhinha lhe atendeu.
– Alô.
– Mamãe, sou eu!
– Querida! Há quanto tempo... Acredita que eu estava agora mesmo olhando um site de compras e pensei em você quando eu vi uma porcelana...
– Mamãe, escute! Não temos tempo para isso! – Interrompeu uma voz desesperada do outro lado, as palavras entrecortadas por uma respiração irregular.
– O que aconteceu querida? – Indagou a velhinha preocupada.
– A chapeuzinho, mamãe... ela... ela... ó meu Deus! Fugiu com o lobo mau!
– O QUÊ?! – Gritou a vovó pondo-se em pé. – Como assim?
– Ela fugiu! Simplesmente sumiu! Levou todas as roupas dela. Eu sabia que aquele baterista daquela banda punk, Os Lobos Maus, era uma má influência.
– Mas como isso aconteceu?
– Eu não sei! Mas ela deixou um bilhete dizendo que ia para a Argentina casar com o lobo!
– Casar? Minha netinha?
– Ao certo aquele cafajeste iludiu a pobrezinha! Minha filha nunca fugiria para se casar por pensamento próprio.
– Tem razão! Algo precisa ser feito. Deixe comigo minha querida. Eu trarei nossa chapeuzinho de volta. – E ao dizer isso desligou o celular.
A vovozinha pôs-se de pé com um salto, e correu até as escadas para o segundo andar, subindo três degraus de cada vez. No corredor, atirou-se para dentro de seu quarto e puxou um pesado baú de debaixo da cama. Abriu-o e tirou uma pesada jaqueta de couro negra, que vestiu por cima do pijama rosa de bolinhas vermelhas. Tirou um par de luvas de couro, e também as calçou. Foi até o banheiro, e com um soco quebrou o espelho da pia, revelando um compartimento secreto onde guardava um grande rifle calibre 50. Pendurou o rifle nas costas e desceu novamente saltando cinco degraus de uma vez as escadas, vestindo a jaqueta sobre o pijama e fazendo um barulho engraçado cada vez que suas pantufas de sapinho pisavam no chão. Antes de sair de casa, todavia, parou e trocou os óculos de leitura que usava por grandes óculos escuros com aro de metal. Assim, vestida para a caça, foi até a garagem, onde sua velha moto, uma Harley Davidson, lhe esperava. Colocou o capacete por cima do bob que usava e montou-a.
– Vou mostrar para esse vira-lata o que os anos 70 me ensinaram. – Disse, tirando um enorme charuto do bolso da jaqueta e o acendendo, levou o charuto aos lábios e deu uma longa baforada, soltando um circulo de fumaça. – Pronto ou não cachorrinho, aí vou eu.
Acelerou, então, sua Harley, fazendo os pneus cantarem e empinando a moto sobre uma única roda, arrebentou a porta da garagem e voou pela estrada.
– Irrá! Como no Woodstock! – Bradou enquanto o vento batia em sua face, fazendo a dentadura vibrar.
Ela pilotou furiosamente, acelerando até suas rodas levitarem, sem diminuir a marcha uma única vez. Ultrapassou vários caminhões, alguns motociclistas que tentaram tirar um racha com ela, três carros de corrida e o trem bala, até que finalmente chegou à Argentina.
Enquanto isso, na capela em que aconteceria o casamento, um desajeito lobo mau, com cabelo moicano, vestindo um terno rasgado nas mangas e com as palavras Cachorro mau tatuado no braço esquerdo, esperava desajeitado, mas com um enorme sorriso no rosto a entrada de sua amada pela nave da igreja. De repente, um trio de guitarristas começaram a tocar a marcha nupcial, e uma jovem vestindo um longo e maravilhoso vestido branco, envolto por seu enorme véu vermelho adentrou a igreja. Todos os convidados, basicamente os membros da banda do lobo, o dono do bar de rock que eles frequentavam e as amigas das lideres de torcida da chapeuzinho, levantaram-se para ver a bela menina entrando. Nesse momento, o dono do bar, um homem muito gordo, careca, com uma barbicha que crescia até o peito, óculos escuros e uma caveira tatuada em cada braço começou a chorar, assoando o nariz no cabelo cumprido do guitarrista da banda do lobo.
Ao chegar ao altar, o lobo tomou a mão de sua noiva, e ambos voltaram-se para o mestre de cerimônias, um anão com cabelo comprido vermelho, unhas grandes pintadas de verde, e uma beca toda ornamentada com pregos. Seguiu-se o sermão emocionante, que comparava o amor à duas motos que correm pela estrada, e o casamento à um show do Pink Floyd, fazendo todo público chorar de emoção.
           – E agora, finalmente – Disse o anão. – Lobo mau, aceita essa bela, linda, maravilhosa, doce, sexy, sarada, poderosa, e radical, jovem, a chapeuzinho, como sua legitima esposa?
            – Auuuuuuuuuuuu! – Assentiu o lobo.
– E você, chapeuzinho, aceita esse pulguento, fedorento, raivoso, desempregado, inútil, e não vacinado, como seu legitimo esposo?
          – Aceito. - Respondeu a jovem encantada.
          – Então, se houver alguém que seja contra este casamento, que fale agora ou cale-se até o divórcio.
         Nesse instante as portas da igreja são arrombadas pela vovó, que adentra a nave da igreja, empinando a moto, e fazendo várias manobras pelo corredor. Ela da uma rabiada, e diz:
        – Eu tenho!
        – Vovó! – Diz chapeuzinho, ao mesmo tempo feliz e surpresa. – O que faz aqui?
        – Não posso permitir que minha única neta se case com esse cão sarnento.
        – Ei, velhota, cão sarnento? Qual é? Eu também tenho sentimentos, sabia?
      – Você vai sentir o meu pé no seu traseiro, vira-lata imundo. – Diz a vovó, colocando todo seu charuto dentro da boca e o mastigando inteiro, engolindo-o por fim. – Vem brincar com a vovó, vem...
       O lobo começa a rir freneticamente, enquanto pobre mocinha diz aos prantos
       – Não vovó, você não entende... Eu amo o lobo mau! 
       – Quieta mocinha, você é jovem demais para saber o que é o amor.
       – Tudo bem cachorrinha. – Intrometeu-se o lobo mau. – Eu resolvo isso em um segundo. – Ele tirou o paletó, revelando o peito musculoso e muito peludo. – Cai dentro velhota.
       – Ora, cão atrevido, como disse John Lennon: “Imagine a minha mão no seu pescoço.”
   E saltou sobre o lobo, pondo-se a surrar-lhe, para espanto do poderoso lobo, que viu-se completamente impotente contra a velhinha que lhe desferia centenas de golpes de Kung Fu. O lobo começou a gritar e ganir, enquanto o som de seus ossos quebrados enchiam a igreja. Todos observavam assustados, tremendo de medo da poderosa velhinha. Por sua vez, a pobre chapeuzinho, assistia a cena horrorizada, sem saber se protegia o amado ou acalmava a vovó. Somente quando a vovó começou a sentir-se muito cansada e o lobo já ia coberto de sangue que ela sacou seu rifle e esbaforida mirou-lhe entre os olhos.
     – Hasta La vista, lobinho. – Disse pausadamente, de tão cansada.
    Mas nesse instante, devido sua idade avançada e o tremendo esforço que colocou em surrar o lobo mau, seu coração já não tão jovem teve um infarto e ela tombou para trás. Desesperada a chapeuzinho acudiu a vovó e em poucos instantes ela estava a caminho do hospital. Todavia, como o lobo já estava muito ferido, o casamento foi adiado até o dia seguinte.
   No outro dia, os convidados estavam novamente em seus lugares, as guitarras soavam românticas outra vez, e o lobo estava em seu lugar, apoiado em muletas e todo enfaixado esperando pela encantadora chapeuzinho que vinha em passos lentos pelo corredor da igreja.

  Novamente, o anão fez seu discurso, quando outra vez as portas da igreja foram abertas com violência, dessa vez por um chute, e uma pálida vovó, carregando um tanque de oxigênio em uma mão, e o soro na outra, adentrou a igreja furiosa, agora vestindo o pijama do hospital e sentindo uma leve brisa bater-lhe por trás.
  – Eu voltei! – Disse, saltando novamente sobre o lobo, que começou a gritar de pânico assim que viu a velhinha, que agora batia-lhe com o tanque de oxigênio.
Entretanto, dessa vez, a chapeuzinho, temendo o pior, pulou sobre o amado, antes que a vovó pudesse surrá-lo ainda mais.
       – Sai daí chapeuzinho. Não posso esfolar esse lobo maldito com você na frente, meu bem. – Falou, tranquilamente a vovó.
       – Nunca! A senhora não entende, eu amo o lobo mau. Se ele precisa morrer, eu morrerei com ele! – Respondeu veementemente.
      – Você morreria por causa desse vira-lata?
      – Sim! Pois mesmo sem ter pedigree, esse cachorro carregou meu coração.
      Diante dessas palavras, e dos olhos marejados de lágrimas da netinha, a doce velhinha sentiu-se ainda mais frágil do que seu estado lhe permitia ser e baixou o tanque de oxigênio.
      – Tem certeza, meu amor? – Perguntou a vovó.
      – Com cada pulga do meu corpo, vovó. – Respondeu a neta, coçando-se por causa das pulgas que pegara do lobo mau.
      – Como posso eu, uma simples dona de casa anarquista e anti-governo, ser contra o amor de uma jovem? Ainda mais da neta que amo tanto?
    – Vovó! – Disse a neta emocionada.
    – Chapeuzinho! – Respondeu a vovó vibrando.
    – Vovó! – Repetiu a neta ainda mais emocionada.
    – Chapeuzinho! – Disse novamente a vovó agora tremendo. – Acho que vou ter outro infarto. – E desmaiou.
   Como a vovó e o lobo estavam agora muito feridos, o casamento novamente foi adiado até o dia seguinte. Mas no outro dia, a igreja novamente cheia, o anão pronto para fazer o seu discurso, um lobo mau em cadeira de rodas em seu lugar, e ao som das guitarras elétricas a doce chapeuzinho vermelho entrou na igreja, sendo conduzida pelo braço por sua avó, que agora vestia um terno roxo, que ia até o chão.

    A cerimônia foi linda, e ao final, quando os noivos beijaram-se, todos na igreja começaram a chorar, incluindo a vovó, que como presente de casamento dera para a neta uma passagem para os dois para uma ilha tropical de nudismo na lua de mel.
     Algum tempo depois, estava novamente a vovó em sua casa, sentada em sua poltrona e surfando na internet quando entrou no Twitter de sua neta e leu o quanto ela estava feliz em sua lua de mel na ilha de nudismo, com uma nota que agradecia em especial sua doce e frágil vovó.
     – Ah, como é bom ser jovem, lembra meus anos de revolução francesa. – Disse saudosista a vovó.
E twitaram felizes para sempre.



Por: André Moreira



sábado, 3 de agosto de 2013

Crônica: O Psicopata da FAFIPA, ou Psicose Social - Uma História Real



Aos profissionais da moda, com licença, mas é preciso dizer que o Medo é uma forte tendência para a próxima estação. E nem se trata das velhas fobias que a sociedade moderna coleciona aos montes no armário, ou da constante tensão provocada pela irradiação progressiva da violência. Trata-se de algo mais focalizado, de um Medo refinado, direcionado e louvado pelos meios de comunicações, que vem e que passa, como as estações das frutas. Trata-se das tendências à paranoia que emergem e desaparecem ao menos duas vezes ao ano, sempre diferentes, sempre terríveis, sempre proclamando o final dos tempos, o apocalipse, a decadência iminente da sociedade, a falta de Jesus no coração e todos os males causados pela escassez de sexo. E pronto! Lá vão todos os especialistas das sortes mais obscuras desfilarem sua verborragia prolixa sobre o problema generalizado, ao fundo musical a lá Hitchcock, terminando em um crescente lacrimoso com as vítimas sobreviventes do terror. Não basta serem vítimas ou algozes, é preciso se tornar celebridade!
E nessa indústria que nunca dorme, a última tendência começou em uma escola no Rio de Janeiro: um jovem armado atirou à sangue frio em vários amiguinhos, provocando várias mortes. Ó, céus! Que terrível! A nação está chocada! É preciso fazer todo um reality show sobre a catástrofe, 24 horas inteiras de cobertura imparcial, ao som de músicas tristes, apelos chorosos de mães em busca de justiça e a foto do meliante elevada às proporções do macabro: “olhe esse cara, com certeza ele é um assassino!”. Tragam os especialistas para discutirem o caso. Revivam a catástrofe de novo e de novo e de novo. Vejam, está é a melhor reconstrução da tragédia. Nova palavra nacional favorita: tragédia. No facebook já começam as correntes, fotos do assassino, pedidos de oração para as famílias das vítimas, convites ao criminoso para visitar Brasília. No rádio o top 10 é a biografia detalhada do assassino. Que tragédia, que tragédia! Só parem de pensar sobre isso no horário da novela. Mas, no outro canal, o ancora adverte: “as cenas que se seguem são chocantes, crianças e pessoas com problemas cardíacos devem mudar de canal.” Um gesto altruísta e desinteressado, que por coincidência eleva o ibope aos céus. Mas voltemos aos estilistas do Medo, os especialistas convocados para os programas “família” da manha: o psicólogo, o psiquiatra, o policial, o professor, o padre, o pai de santo, o representante do movimento gay no Amazonas. Todos com opiniões fortes para compartilhar e ideias batidas totalmente inéditas, seguida de um minucioso retrato da psique de um psicopata: nova palavra nacional favorita, psicopata! E de repente, vagas imensas da massa do público se tornam, da noite para o dia, especialistas em psicopatia. Os professores reconhecem ao menos dois psicopatas por cada turma. O açougueiro reconhece pelo menos metade dos seus fregueses. Os vereadores decidem não mais fazerem sessões na câmara, porque com certeza os representantes da oposição são psicopatas!
Mas vejam o que aconteceu em uma certa universidade do interior do estado, uma tal de Fafipa. Ouvem-se gritos, certa movimentação, a policia é chamada: ora, alguém morreu? Não! Infelizmente ainda não, mas pior! Um psicopata foi identificado pelas centenas de especialistas formados pela televisão.
Lá vai ele, marchando pelos corredores olhando para o chão e em passos fortes e rápidos, ostentando sua barba assustadora e um penteado ao estilo Renato Russo. Como sabem que ele é psicopata? Você não soube? Minha prima disse que uma colega de classe da irmã dela disse que a tia da sua cunhada disse que o namorado do irmão mais velho do vizinho, que faz Letras, viu na página do Orkut dele todo tipo de mensagens politicas e religiosas extremistas, dizendo que gostou do que aquele primeiro psicopata fez no Rio de Janeiro e que quer repetir na Fafipa! Só falta que exista uma comunidade só para psicopatas no Orkut: Psicopatas do Brasil. Mas você viu o Orkut dele, não, mas eu acredito na minha prima!
Agora é oficial, basta o psicopata da Fafipa sair aos corredores e todos os alunos, de tanto medo e por estarem completamente apavorados, correm até às portas de suas salas para verem-no passar. É ele, é ele, que medo!, que medo!. De repente começam os gritos. Uma mocinha linda e um pouco carente entra trêmula e ofegante, dizendo: “eu o vi.” Imediatamente se forma um grupo ao redor dela para perguntar detalhes, quando uma segunda mocinha linda e um pouco carente começa a chorar: “ele passou por mim, ele vai me matar!” O grupo instantaneamente se desloca da primeira mocinha linda e um pouco carente para a segunda. A primeira, ainda desolada e agora sem público começa a gritar e arrancar os cabelos inconsolável: “e se ele me matar?” O grupo volta correndo para ampará-la, quando a segunda subitamente desmaia!
E como ele faz para marcar as vítimas? Eis uma pergunta complexa, pois ele usa um método de possível inserção psicofísica de validação da inércia: ele esbarra em suas vítimas! Se você trombar com ele no corredor comece a orar à Deus, ao Buda, à Alá, aos orixás, ao Olimpo, porque você irá com toda certeza absoluta do universo morrer! Mas o pior só acontece por último: uma data é marcada na parede do banheiro masculino! Por dedos invisíveis como na bíblia? Não, de modo ainda mais impressionante: com errorex! E nessa data todos já sabem: é o dia da colheita! Ele virá armado até os dentes, com duas metralhadoras, um fuzil, vinte granadas e uma motosserra elétrica para matar todos os universitários!
Bastou isso para se iniciar a avalanche de pânico e temores coletivos: alguém deveria pesquisar isso, seria o Medo algo transmitido pelo ar? Enfim, já não se falava em outra coisa nos ônibus e grupos de alunos. Só no terrível psicopata – alguém sabe, por um acaso, como diabos ele se chama? – e na data fatídica onde suas vidas terminariam. Ninguém pareceu levar em conta que aquele psicopata, apesar de ser um psicopata, era um sujeito legal, que avisava suas vítimas sobre o dia do seu ataque para terem tempo assim de colocar suas coisas em ordem antes de deixar esse mundo. Mais do que isso, pensem a frustração do psicopata ao chegar no dia marcado e perceber que suas ovelhinhas haviam faltado. Com certeza ele sentaria no meio-fio do estacionamento, ainda vestindo seu arsenal e começaria a chorar: “Oh, Deus, eles são tão espertos! Bem que a minha mãe me disse para fazer Letras ao invés de matar pessoas...” A pressão se tornou tão grande que nem os professores querem pisar na universidade no dia marcado. Aula vaga em prol da vida! Isso que é humanitarismo.
Finalmente a data marcada chega e passa e, nenhuma morte acontece? Os alunos aliviados e profundamente decepcionados decidem voltar para suas aulas regulares. Nem 24 horas se passam e o terrível pesadelo do psicopata começa a esfriar. Mas esperem! Quem é aquele rapaz bonito no ponto de ônibus? Meu Deus, é o psicopata! Ele tirou a barba! E de repente, o terrível inimigo público número um recebe centenas de solicitações no Facebook. Ah!, bem que ele podia esbarrar em mim agora... Suspiram as mocinhas lindas e um pouco carente.

Mas enfim, a época dos psicopatas passou e agora a moda é queda de aviões. Então, abram seus guarda-chuvas e apertem bem o sinto, porque essa é uma moda que promete decolar! 
Seja como for, o que se podemos dizer desse mercado da moda? Voltemos essa noite em silêncio para casa Senhoras e Senhores, porque na passarela da sociedade, quem diria?!, até os psicopatas sofrem de bullying.

Por: André Moreira Felix