(Tradução: Manuel A. Domingos) se não sai de ti a explodir apesar de tudo, não o faças. a menos que saia sem perguntar do teu coração, da tua cabeça, da tua boca das tuas entranhas, não o faças. se tens que estar horas sentado a olhar para um ecrã de computador ou curvado sobre a tua máquina de escrever procurando as palavras, não o faças. se o fazes por dinheiro ou fama, não o faças. se o fazes para teres mulheres na tua cama, não o faças. se tens que te sentar e reescrever uma e outra vez, não o faças. se dá trabalho só pensar em fazê-lo, não o faças. se tentas escrever como outros escreveram, não o faças.
se tens que esperar para que saia de ti a gritar, então espera pacientemente. se nunca sair de ti a gritar, faz outra coisa.
se tens que o ler primeiro à tua mulher ou namorada ou namorado ou pais ou a quem quer que seja, não estás preparado.
não sejas como muitos escritores, não sejas como milhares de pessoas que se consideram escritores, não sejas chato nem aborrecido e pedante, não te consumas com auto- — devoção. as bibliotecas de todo o mundo têm bocejado até adormecer com os da tua espécie. não sejas mais um. não o faças. a menos que saia da tua alma como um míssil, a menos que o estar parado te leve à loucura ou ao suicídio ou homicídio, não o faças. a menos que o sol dentro de ti te queime as tripas, não o faças.
quando chegar mesmo a altura, e se foste escolhido, vai acontecer por si só e continuará a acontecer até que tu morras ou morra em ti.
Basta
pronunciar o nome do escritor russo Dostoiévski em uma sala com literatos (ou
pseudo-literatos) para ganhar respeito. Isso porque desde sua batalha com
Tolstoi para ser o maior escritor do mundo, Dostoiévski paira sobre os
fantasmas dos maiores escritores da humanidade de todos os tempos. Dono de uma
prosa vertiginosa, em um ritmo latente, que conduz o leitor por vielas sujas,
estreitas e difusamente iluminadas, o russo apaixonado pelos humilhados e
ofendidos, fez jus ao titulo de “o pai da psicanálise”, concedido por ninguém
menos que o tio Freud. E conquistou esse posto graças a sua inclinação por
alguns temas, que se tornaram muito recorrentes ao longo de suas obras, como,
por exemplo, a dualidade, que foi fator determinante na composição de seus
principais personagens (vide Raskólnikov), e que já aparecia em seu segundo
romance (e bem controverso romance) O
duplo (Editora 34, 2011).
A
história do romance contem todos os elementos do universo dostoievskiano, é um
misto de drama pastelão com um humor muito, mas muito negro mesmo. E é esse
tempo ácido que torna a história tão magistral. Dostoiévski é irônico como
nunca, e zomba de seu personagem para zombar da condição social de seu tempo, e
ao fazer isso cria uma nova forma narrativa, até então inédita no século XIX, o
que faz com que seu tema, a loucura, mesmo já não sendo novo, tenha um ar tão inédito
para os russos.
Em
suma, o livro conta as desventuras do senhor Yákov Golyádkin, um funcionário de
uma repartição pública, que ao voltar para casa em uma noite após ter sido
vergonhosamente rejeitado pela jovem que amava, encontrou-se cara a cara com
outro homem, idêntico em todos os aspectos com ele próprio. Desde ponto em
diante, começa o inferno do senhor Golyádkin, que se vê preso em algum tipo de
conspiração absurda cuja única finalidade é desmoralizá-lo e destruir sua vida,
e na qual todas as pessoas em maior ou menor grau estão envolvidos, todos
manipulados por seu único e verdadeiro inimigo: seu duplo.
Fiódor Dostoiévski
A
construção narrativa é uma sátira, e Dostoiévski parece estar atrás de cada
página zombando de seu personagem. Essa forma de narrar causou grande
desconforto na época, e embora Dostoiévski houvesse sido aclamado pouquíssimo tempo
antes de lançar O duplo, por seu
romance anterior, Gente pobre, ele
vaiado pela crítica e fez muitos leitores torcerem o nariz com a história do
senhor Golyádkin. Mas até aí tudo bem, afinal toda inovação estilística causa
desconforto em seu tempo. Mas o grande ponto da sátira de Dostoiévski, é a
maneira como ele relaciona a frivolidade da sociedade russa em suas regras
sociais, bem como o desprezo que os mais importantes membros da sociedade têm
por seus subalternos. É um humor que chega a ser absurdo, com as cenas
totalmente inusitadas que o escritor pinta.
Ainda
assim, talvez o tema absoluto da obra seja a solidão humana, pois todos os
personagens de O duplo estão
confinados nos limites de sua vida, pela condição social, pela burocracia,
pelos vícios, etc. E assim, a história conta o processo de queda que a solidão ensurdecedora
pode causar, levando um homem até a loucura.
E
em 2013 O duplo ganhou uma versão cinematográfica,
intitulada The Double, comJesse
Eisenberg no papel principal. O filme ainda não tem data para lançamento do
Brasil, mas confesso estar tão apreensivo quanto ansioso pelo resultado. isso porque a ideia do diretor do filme foi
levar a trama da Rússia do século XIX para os dias atuais. Deu certo com Conan Doyle, Shakespeare, e outros grandes. Vamos ver o que vai ser de Dostoiévski. Você pode conferir o
trailer aí em baixo.
Já
faz um tempo desde que li A insustentável
leveza do ser, do Tcheco, Milan Kundera, e com certeza a expectativa para
ler outro livro era imensaaa!!! Basta dizer que A insustentável leveza do ser se tornou um de meus romances
preferidos, e não foi de imediato. Depois que fechei o livro e mesmo depois de
começar a ler outros títulos, a história de Kundera continuava vagando pela
minha cabeça, me assombrando, um tipo de fantasma. Foi quando percebi o quanto
o livro me marcou, e se tornou parte de mim. Logo, quando comprei A ignorância (Cia das Letras, 2002), já
senti na barriga aquele friozinho de “mal posso esperar”. E valeu a pena? “Tudo
vale a pena se a alma...”, nem para tanto, mas com certeza foi uma das melhores
leituras de 2013 (é, to meio atrasadinho).
Embora
o livro não tenha a mesma intensidade narrativa e poder poético (profundo assim
mesmo!) que A insustentável leveza do ser,
afinal obras-primas não nascem todos os dias, o livro não deixa de mostrar
porque Kundera é apontado pela crítica internacional como um dos maiores
escritores contemporâneos do planeta. Extremamente bem escrito, em um tom
pessoal (é novamente um narrador onisciente com uma forte inclinação à ser o
próprio autor), o romance carrega os desvios temporais que marcam a narração
não linear do autor, e continua fazendo as explanações psicológicas que tornam
tão densos os romances de Kundera.
Milan kundera
A
trama conta a história de um amor que só se torna possível devido a ignorância dos
protagonistas, estes, Irena e Josef, são ambos refugiados da recém formada
República Tcheca, fugitivos do domínio comunista que arrasou o país por anos.
Agora, depois de muito tempo, eles retornam ao país para descobrir que tudo (ou
apenas eles) estava diferente. O romance trata, assim, de um dos assuntos mais
europeus (e porque não mundial?) do século XX, que é a perda da identidade.
Pois quando esses dois personagens eram apenas exilados, os países que lhes
acolheram os viam como imigrantes, e quando voltaram para seu próprio país, o
contato com outros povos e novas realidades tratou de modificá-los ao ponto de
não se reconhecerem mais como “tchecos”. Então, ao que eles pertencem? Mas
antes de responderem essa pergunta ambos se encontram no aeroporto, e levados
por um engano decidem se fazer amantes.
O
engano: ela o reconhece (ou pensa reconhecer) e acredita que ele está tão impressionado
com o encontro enquanto ela. Mas a verdade é que Josef nem imagina quem seja
Irena. E o curioso, é que todo sucesso (aquele que houver) de seu
relacionamento será derivado desse pequeno detalhe. E com isso Kundera aborda o
tema do amor, de como os sentimentos, mesmo o maior deles, é desigual, e muitas
vezes (se não em todas) é construído em cima de enganos, erros, e ilusões.
O
romance de Kundera é extremamente moderno, e extremamente humano. Seu último
trabalho bem poderia ser quase uma novela, mas sua intensidade e profundidade magistral
tornam os temas (Kundera se define como um autor que escreve através de temas
seus romances) uma dos mais belos e poderosos estudos sobre o amor, a
identidade e o conhecimento. Tudo isso combinado com o alcance da narrativa de
um dos maiores escritores de todos os tempos. Livro super recomendado.