sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Um concelho do Seu Bukowski para quem quer ser escritor:

Charles Bukowski


então queres ser um escritor?

(Tradução: Manuel A. Domingos)

se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever

procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,

não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.

se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.

se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.

não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,

não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-
— devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.

quando chegar mesmo a altura,

e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.


não há outra alternativa.

e nunca houve.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Os duplos de Dostoiévski



Basta pronunciar o nome do escritor russo Dostoiévski em uma sala com literatos (ou pseudo-literatos) para ganhar respeito. Isso porque desde sua batalha com Tolstoi para ser o maior escritor do mundo, Dostoiévski paira sobre os fantasmas dos maiores escritores da humanidade de todos os tempos. Dono de uma prosa vertiginosa, em um ritmo latente, que conduz o leitor por vielas sujas, estreitas e difusamente iluminadas, o russo apaixonado pelos humilhados e ofendidos, fez jus ao titulo de “o pai da psicanálise”, concedido por ninguém menos que o tio Freud. E conquistou esse posto graças a sua inclinação por alguns temas, que se tornaram muito recorrentes ao longo de suas obras, como, por exemplo, a dualidade, que foi fator determinante na composição de seus principais personagens (vide Raskólnikov), e que já aparecia em seu segundo romance (e bem controverso romance) O duplo (Editora 34, 2011).
A história do romance contem todos os elementos do universo dostoievskiano, é um misto de drama pastelão com um humor muito, mas muito negro mesmo. E é esse tempo ácido que torna a história tão magistral. Dostoiévski é irônico como nunca, e zomba de seu personagem para zombar da condição social de seu tempo, e ao fazer isso cria uma nova forma narrativa, até então inédita no século XIX, o que faz com que seu tema, a loucura, mesmo já não sendo novo, tenha um ar tão inédito para os russos.
Em suma, o livro conta as desventuras do senhor Yákov Golyádkin, um funcionário de uma repartição pública, que ao voltar para casa em uma noite após ter sido vergonhosamente rejeitado pela jovem que amava, encontrou-se cara a cara com outro homem, idêntico em todos os aspectos com ele próprio. Desde ponto em diante, começa o inferno do senhor Golyádkin, que se vê preso em algum tipo de conspiração absurda cuja única finalidade é desmoralizá-lo e destruir sua vida, e na qual todas as pessoas em maior ou menor grau estão envolvidos, todos manipulados por seu único e verdadeiro inimigo: seu duplo.
Fiódor Dostoiévski
A construção narrativa é uma sátira, e Dostoiévski parece estar atrás de cada página zombando de seu personagem. Essa forma de narrar causou grande desconforto na época, e embora Dostoiévski houvesse sido aclamado pouquíssimo tempo antes de lançar O duplo, por seu romance anterior, Gente pobre, ele vaiado pela crítica e fez muitos leitores torcerem o nariz com a história do senhor Golyádkin. Mas até aí tudo bem, afinal toda inovação estilística causa desconforto em seu tempo. Mas o grande ponto da sátira de Dostoiévski, é a maneira como ele relaciona a frivolidade da sociedade russa em suas regras sociais, bem como o desprezo que os mais importantes membros da sociedade têm por seus subalternos. É um humor que chega a ser absurdo, com as cenas totalmente inusitadas que o escritor pinta.
Ainda assim, talvez o tema absoluto da obra seja a solidão humana, pois todos os personagens de O duplo estão confinados nos limites de sua vida, pela condição social, pela burocracia, pelos vícios, etc. E assim, a história conta o processo de queda que a solidão ensurdecedora pode causar, levando um homem até a loucura.

E em 2013 O duplo ganhou uma versão cinematográfica, intitulada The Double, com Jesse Eisenberg no papel principal. O filme ainda não tem data para lançamento do Brasil, mas confesso estar tão apreensivo quanto ansioso pelo resultado. isso porque a ideia do diretor do filme foi levar a trama da Rússia do século XIX para os dias atuais. Deu certo com Conan Doyle, Shakespeare, e outros grandes. Vamos ver o que vai ser de Dostoiévski. Você pode conferir o trailer aí em baixo.



sábado, 25 de janeiro de 2014

Do amor e do esquecimento. Resenha do romance A Ignorância, de Milan Kundera




Já faz um tempo desde que li A insustentável leveza do ser, do Tcheco, Milan Kundera, e com certeza a expectativa para ler outro livro era imensaaa!!! Basta dizer que A insustentável leveza do ser se tornou um de meus romances preferidos, e não foi de imediato. Depois que fechei o livro e mesmo depois de começar a ler outros títulos, a história de Kundera continuava vagando pela minha cabeça, me assombrando, um tipo de fantasma. Foi quando percebi o quanto o livro me marcou, e se tornou parte de mim. Logo, quando comprei A ignorância (Cia das Letras, 2002), já senti na barriga aquele friozinho de “mal posso esperar”. E valeu a pena? “Tudo vale a pena se a alma...”, nem para tanto, mas com certeza foi uma das melhores leituras de 2013 (é, to meio atrasadinho).
Embora o livro não tenha a mesma intensidade narrativa e poder poético (profundo assim mesmo!) que A insustentável leveza do ser, afinal obras-primas não nascem todos os dias, o livro não deixa de mostrar porque Kundera é apontado pela crítica internacional como um dos maiores escritores contemporâneos do planeta. Extremamente bem escrito, em um tom pessoal (é novamente um narrador onisciente com uma forte inclinação à ser o próprio autor), o romance carrega os desvios temporais que marcam a narração não linear do autor, e continua fazendo as explanações psicológicas que tornam tão densos os romances de Kundera.
Milan kundera 
A trama conta a história de um amor que só se torna possível devido a ignorância dos protagonistas, estes, Irena e Josef, são ambos refugiados da recém formada República Tcheca, fugitivos do domínio comunista que arrasou o país por anos. Agora, depois de muito tempo, eles retornam ao país para descobrir que tudo (ou apenas eles) estava diferente. O romance trata, assim, de um dos assuntos mais europeus (e porque não mundial?) do século XX, que é a perda da identidade. Pois quando esses dois personagens eram apenas exilados, os países que lhes acolheram os viam como imigrantes, e quando voltaram para seu próprio país, o contato com outros povos e novas realidades tratou de modificá-los ao ponto de não se reconhecerem mais como “tchecos”. Então, ao que eles pertencem? Mas antes de responderem essa pergunta ambos se encontram no aeroporto, e levados por um engano decidem se fazer amantes.
O engano: ela o reconhece (ou pensa reconhecer) e acredita que ele está tão impressionado com o encontro enquanto ela. Mas a verdade é que Josef nem imagina quem seja Irena. E o curioso, é que todo sucesso (aquele que houver) de seu relacionamento será derivado desse pequeno detalhe. E com isso Kundera aborda o tema do amor, de como os sentimentos, mesmo o maior deles, é desigual, e muitas vezes (se não em todas) é construído em cima de enganos, erros, e ilusões.

O romance de Kundera é extremamente moderno, e extremamente humano. Seu último trabalho bem poderia ser quase uma novela, mas sua intensidade e profundidade magistral tornam os temas (Kundera se define como um autor que escreve através de temas seus romances) uma dos mais belos e poderosos estudos sobre o amor, a identidade e o conhecimento. Tudo isso combinado com o alcance da narrativa de um dos maiores escritores de todos os tempos. Livro super recomendado.