domingo, 14 de julho de 2013

O humor negro em Triste fim de Policarpo Quaresma

Eae, pessoal, tudo bem? O post a seguir é de um clássico da nossa literatura. Ficou um pouco grande, mas porque foi feito pensando em vestibulares, aulas de Literatura Brasileira na faculdade, etc. É uma análise, breve, não uma resenha. Então tem muuuuuuuito spoiler. Leia com cuidado se não leu, mas se vai cair em uma prova ou seminário para você, esperamos que ajude! 
    Quando Lima Barreto convida o leitor ao caminho de infortúnios do major Policarpo Quaresma, está abrindo a reticências para uma realidade de nosso país que, ainda que ambientada na ficção, de uma trama em um Brasil pós-monarquia, persiste, em uma igualdade muitas vezes revoltante, até hoje: o desleixo com os valores nacionais, o descaso com os problemas éticos e a desvalorização de nossa cultura, suplementada por uma alienação em massa. Todavia, a sátira neo-realista do autor narra o tortuoso caminho de um herói virtuoso que é, provavelmente, o único realmente engajado pelos interesses nacionais legítimos, sendo portanto, este, castigado unicamente por seus ideais nobres, pintando um cenário que, não fosse pura ironia, canta um sarcasmo corrosivo. E será, por todas as 182 páginas de seu romance mais popular, que iremos ver, indiretamente, quase que o próprio Lima Barreto sofrendo à espreita de cada página com sua personagem. Como se ao mesmo tempo em que constrói sua crítica ao Brasil, visse nas dores de Quaresma suas próprias dores e fossem suas ambições maiores para o país, as ambições do próprio autor, sendo este casamento autor-personagem, provavelmente o elemento que fomenta a química poderosa do livro. Mas, seguindo os desenlaces da trama que divide-se em três partes, cada qual composta por cinco capítulos, iremos ver o altivo major Policarpo Quaresma em sua empreitada que culminará em desilusão e sua eventual morte. Em um primeiro momento, encontramos um homem respeitável e reservado. Cujos hábitos de uma meticulosa precisão são conhecidos por todos os vizinhos. Sendo este homem, um brasileiro apaixonado e que condensa esse amor em todas as nuances de sua vida. Basta a discrição de sua biblioteca, floreada com um acervo de poetas e escritores totalmente nossos, que cantavam as glórias de nosso país, ou uma rápida olhada por seu jardim, ornamentado apenas com plantas nacionais. Mas o ato mais significativo desse brasileiro está em seu desejo de aprender a tocar viola, o que não trata-se de um mero capricho, e sim de uma exaltação à cultura, através do gênero musical que julga tipicamente nosso: a modinha. E esse louvável patriota nem mesmo preocupasse com o que dirão seus vizinhos, uma vez que são os violeiros tidos por marginais e discriminados pela sociedade.
    O autor tenta fugir dessa visão com a sua personagem Ricardo Coração dos Outros, cujo amor pela cidade e pela música é quase tão vasto quando da personagem principal. Todavia, o que estes dois românticos não percebem é que suas fantasias são meras idealizações, completamente deslocadas dentro do plano das coisas reais. Assim, como o título da obra já nos adverte, terão de aprender da forma mais dura. E se a biblioteca de Quaresma já anunciava um retorno cultural ao que é legitimamente da terra, veremos que os ideais de Quaresma estendem-se para alem das paredes de sua casa, estendendo por objeto todo o país. Escreve então uma calorosa carta ao congresso acerca de sua visão quanto ao problema da língua: “... certo de que a língua portuguesa é emprestada (...) vem pedir que o congresso decrete o Tupi-Guarani , como língua oficial e nacional do povo brasileiro.” (Pág. 52) De tão grandiosa e minuciosa era sua ideologia, acreditava que somente um idioma sem parentesco alem mar pode-se ser o idioma do Brasil. O desfecho de sua campanha, todavia, não trouxe-lhe prazer algum, ao contrário, concedeu-lhe o amargo sabor da humilhação pública em todos jornais da cidade. Fato este que explique porque razão fora parar nosso herói em um manicômio. É também essa outra peculiaridade entre autor e personagem, já que ambos foram internados em sanatórios, e o pai do próprio Lima Barreto o fora também, como uma terrível predileção do que sucederia ao filho. E sendo toda obra filha de seu autor, há de se entender o acontecido com Quaresma. A humilhação e a loucura ainda não são, todavia, castigo o bastante para esse Dom Quixote brasileiro, pois, enquanto o personagem de Cervantes buscava dragões e gigantes, Quaresma enfrentava um inimigo muito mais maligno: a módica cultura do jeitinho brasileiro de cuidar do próprio umbigo.
    Adentrando agora a segunda parte do livro, encontramos um Quaresma a caminho de seu Sossego, literalmente, pois, por sugestão da afilhada, decide mudar-se para o interior, comprando um sitio onde empregará todos os seus esforços para provar a supremacia do Brasil até no solo, mostrando que tudo o que é cultivado em nossa terra torna-se maior, mais saboroso, que em qualquer outro lugar do mundo. É também nesse sitio que ele se vê frente a outra batalha escabrosa: o combate as formigas. Mas, tanto seus sonhos de agricultor, quanto sua peripécia contra as saúvas, são interrompidos pela notícia de revoltas pelo país. Outra vez o espírito dom quixotesco da personagem leva-o de encontro ao mundo lúdico que habita, uma vez que acredita, Quaresma, que uma nação ideal deva ser fomentada na submissão ao líder, tal qual ordena a honra de um cavaleiro, e assim une-se ao exército, para combater, em nome do presidente Floriano Peixoto, os revoltos. Controlada a insurreição, muitos conseguem tirar proveito de cargos elevados no ministério, tal qual era a real intenção destes ao unirem-se ao exército. Quaresma, todavia, é mandado para uma prisão, onde trabalha como carcereiro, por mais que houvesse sido ele o único com intenções legítimas a lutar. Desempenha seu cargo de maneira exemplar, como era de se esperar. E como também se havia de esperar, não fora sua consciência desligada de seus ideias – infelizmente para ele. Assim, ao deparar-se certo dia com um juiz que distribuía as sentenças aos prisioneiros aleatoriamente, sem um julgamento adequado e com punições por vezes exageradas e injustas, escreve uma carta ao presidente, explanando toda sua indignação frente ao fato e pedindo medidas. Seu pedido é aceito e uma medida é tomada: é considerado Quaresma um traidor, atirado à cadeia e sentenciado à morte. Nesse ponto, o triste fim da personagem se dá em dois momentos: no primeiro, o herói patriota, o homem motivado pelas mais elevadas intenções e guiado por um apurado senso ético, é considerado pelo país que tanto amava e defendia um traidor, sendo punido da forma mais severa cabível por seu amor. Não trata-se apenas de uma ingratidão, mas uma cusparada na cara de Quaresma por parte de seu Brasil. 
    O homem que tanto defendera-o, é considerado inconveniente por este, ao mesmo tempo em que personagens nem um pouco preocupados com a mortal conseguiam alcançar seus objetivos egoístas. Em segundo momento, encontramos o verdadeiro sadismo do autor, ao reservar a personagem um destino quiçá pior do que a morte: a realidade. Não basta matar o sonhador, é preciso fazer com que este acorde. E é então, quando Quaresma se vê preso, sozinho e traído, que o véu onírico que redigia os valores frente seus olhos se rasga, e antes de ser morto ele percebe que durante todo este tempo esteve perseguindo coisas impossíveis, sendo acometido de maquinações amargas que ruminam a desilusão. Talvez, nem se possa mais considerar a morte do herói uma sina triste, pois ao descobrir que o Brasil que tanto amava não existe, e que seus ideais não cabiam no mundo que lhe cercava, encontramos um personagem sem sua raison d'être, como se sua própria essência houvesse se extinguindo, o que da à morte não um aspecto trágico, mas de alívio. Não que nos seja surpresa esse desfecho, pois enquanto a personagem despedaçada do herói aguarda em sua cela pela execução, o autor já havia nos advertido desde o titulo sobre o Triste fim de Policarpo Quaresma. O próprio nome do protagonista fora escolhido sobre medida para seu destino, pois o nome Policarpo vem da junção de duas palavras gregas (poli e carpo) que significam literalmente: Muito Sofrimento. E o próprio sobrenome da personagem é uma alusão aos quarentas dias de penitencia católicos após o carnaval. 
    Lima Barreto não usou de ilusões para compor um Brasil do final do século XIX, período em que se passa a história. Ao contrário, captou e retratou nas desventuras de sua personagem uma falência do senso crítico nacional por parte de uma população alienada, de uma massa de políticos oportunistas e de modistas acoturizados que viam na cultura estrangeira mais valor que na cultura nacional. É com um homem diabólico que ele conduz a caricata personagem, em toda sua extravagância e exagero, denunciando pelo excesso um problema medido em todos os estrados sociais. Entretanto, ao mesmo tempo que faz a piada, não podemos deixar de sentir por parte de Lima Barreto uma intenção de denunciar com a caricatura o estado de letargia social que vivia (ou talvez ainda viva) a sociedade brasileira, chamando-os para a mudança. Dessa forma, a visão sonhadora e ingênua de Policarpo, tão em desacordo com o mundo real, talvez não deixe de ser o elemento que falta para se concretizar o sonho de um Brasil nobre. Pois talvez a maior piada feita pelo autor não esteja no escabroso final de Policarpo, mas na indiferença com que tratamos a realidade que ele denúncia, o que nos trás à um Triste Fim não de uma personagem tipo, mas de um país inteiro.

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