Começar essa resenha foi difícil, até
para escolher um título, porque todos os realmente pertinentes que consegui
pensar (espremendo muito as ideias) me pareciam, de certa forma, spoilers.
Isso, simplesmente, porque o livro Reparação
(Companhia das Letras. 2008), do britânico Ian McEwan, é um daqueles trabalhos
que está muito além do mero conflito do enredo, mas a sua substância final, ou
seja, a estrutura narrativa como um todo, é que torna essa obra algo excepcional,
o que torna muito difícil tocar nesses pontos fantásticos sem levantar algumas
informações que podem deixar alguns ranzinzas inconformados. E abro um parêntese
para dizer que esse foi um dos melhores livros que já li na vida e até agora o
melhor de 2015.
Ian McEwan |
Em todo caso, essa completude do livro isso
não significa que o enredo por si só não seja muito bom. A história, basicamente,
é uma crônica familiar, de uma família inglesa tradicional (e por tradicional
leia-se rica), em que estão presentes todos os conflitos de classe que
afloravam na Europa dos anos 30. E não só pela estrutura social: patrões e
empregados; mas os próprios personagens encarnam, com suas peculiaridades psicológicas,
representações dessa sociedade estratificada: a mulher que começa a ganhar seu
espaço num mundo machista que ainda não sabe o que fazer com essa nova mulher,
o pai patriarcal, ausente, que paira como uma autoridade central, o homem de
classe inferior que começa a ascender socialmente, a mãe que é um eco de um
passado conservador, marcado principalmente pela lei da aparência e pela
nulidade, o filho fútil, amante da vida fácil, sem ambições maiores e, talvez o
elemento mais importante da trama, a jovem em transição, na busca por
autoconhecimento, enquanto sua existência fervilha, como uma época marcada por
profundos abalos que transformariam o mundo. E essa jovem, talvez, a
protagonista da obra.
Briony Tallis é uma menina de 13 anos
(13 anos nessa época é o mesmo que infância), com uma forte atração pela
palavra escrita e um desejo de se tornar escritora. É desse desejo que parte
sua compreensão do mundo e é motivado por ele que ela começa a se transformar.
Certo dia, ela testemunha sua irmã e o filho da empregada em uma cena inusitada
na fonte da casa (é, a casa deles era pobrinha assim), quando a irmã mais velha
se desnuda e entra apenas com a roupa de baixo, na frente do rapaz, na fonte,
enquanto uma cena de conflito, que a jovem Briony não entendia, se
desencadeava. A partir desse momento ela tenta juntar as peças espalhadas por
sua cabeça e acaba concluindo que o filho da empregada, Robbie, é algum tipo de
vilão, o que a leva, mesmo sem querer, a contar uma mentira, cujo resultado é
separa Robbie de sua irmã mais velha e enviá-lo para a prisão, ainda que
inocente.
O restante do livro irá tratar das consequências não imediatas desse
seu ato e as tentativas da agora com 18 anos Briony Tallis de reparar o mal
ocorrido, tendo como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. O autor ainda
tenta dar ao romance um ar de história de amor, mas ele desconstrói essa ideia
no epílogo com muita força.
Poster do filme |
A narrativa é densa e se desdobra sobre
si mesma, ou seja, usando um discurso indireto livre (quase não se encontram
falas), onde um narrador em terceira pessoa (na maior parte do livro) quase
reproduz o fluxo de pensamento dos personagens. Além disso, é importante
destacar, a ação que o livro narra acontece mais em função de explicar o psicológico
do personagem, que em função do enredo em si, o que faz com que Reparação seja,
antes de mais nada, um estudo psicológico humano, do qual se conclui que
estamos todos além do bem e do mal, sendo movidos por uma busca cujo sentido
escapa, em algum momento, de todos nós.
Todos os personagens são desprovidos de
maniqueísmo, ao ponto que odiar ou amar completamente qualquer um deles é impossível.
Essa sensação de que o mais importante é o psicológico é reforçada pela
estrutura do livro, dividida em três partes, sendo que a primeira parte, aquela
que se refere a infância e ao crime de Briony, é mais longa, justamente porque
é a que mais explica e situa os personagens (um recurso que nosso Machado
adorava usar), por isso a narrativa é mais lenta também. No final do livro,
você irá notar que muitas coisas aparentemente aleatórias, como uma peça
escrita pela protagonista lá na infância, possui uma ligação direta com a
história, o que dá ao livro aquela sensação de obra bem acabada, elaborada nos mínimos
detalhes para ser uma obra-prima.
O ponto forte da obra, no entanto, é sua
metalinguagem, que mais que construir um complexo panorama de uma Europa em
guerra, trata de questões de arte e estética, principalmente do ponto de vista
literário, com um final que vai explodir a cabeça do leitor
. E desde já fica o
aviso: McEwan é um cara cruel, maligno de verdade, que vai esperar até a penúltima
página do livro para te dar um chute no saco com muita força e te fazer chorar
e, de quebra, roubar sua esperança. Mas fora isso, é um livro indispensável para
amantes de uma boa história e da arte em geral. É um livro para se apaixonar
por ele e do qual você nunca via se livrar completamente.
Não
precisava haver uma moral. (...) Não era só o mal e as tramoias que tornavam as
pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo, era a
incapacidade de apreender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais
quanto nós (...) Essa era a única moral que uma história precisava ter.
– McEwan, Ian. Reparação. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008; 55.
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