O próprio José Saramago sempre se
reconheceu como um ensaísta que seguiu pelo caminho errado, e em suas andanças
pelas palavras acabou se tornando um romancista, e, ironicamente (ou não), dos
bons. O comitê do Nobel que o diga. Em todo caso, seu espirito ensaístico fez
com que seu olhar sobre a história – e nos últimos anos principalmente sobre a
história recente, fosse sempre crítico, ácido, minucioso e, muito
frequentemente, filosófico. Disso nasceu dois traços fundamentais de sua obra,
o primeiro, a natureza nem um pouco fofa de seus escritos, motivo pelo qual o
autor é conhecido em Portugal, muito merecidamente, como “sal amargo” (esses
trocadilhos portugueses...); e a segunda característica, muito mais relevante, que
é a que concerne ao seu estilo, que qualquer leitor de primeira viagem
saramaguiano sabe do que estou falando: a estrutura propriamente dita de sua
prosa, com uma pontuação e paragrafação peculiar, além da construção do
narrador, sempre o mesmo, sempre uma projeção da criticidade do próprio
Saramago. Uma prosa, que como o próprio autor explica, nasceu de seus
pensamentos para ser reproduzida em voz alta. E é justamente nesses termos que
encontramos a obra que talvez seja a mais contemporânea do autor, A Caverna (Companhia das Letras, 2002).
Densa, pesada, irônica, simbólica,
ácida, são alguns dos adjetivos que se pode atribuir a obra. Entretanto, se
você não é um leitor de primeira viagem na linguagem saramaguiana, você irá
perceber que é um livro que flui relativamente fácil comparado com outras obras
do autor. Em parte isso se deve a própria história, que é menos filosofada e
mais contada. Além de ser muito mais atual.
José Saramago |
Saramago em A Caverna, faz uma
recontagem do mito da caverna que aparece na literatura pela primeira vez na
boca de Sócrates e através da pena de Platão, lá na Grécia Antiga. No mito
original, temos homens acorrentados em uma caverna, sem conseguir sair e que
contemplam sombras na parede a sua frente, as quais tomavam por realidade. Na
versão de Saramago, entretanto, o homem está livre e, que ironia, quer entrar
na caverna. Essa metáfora é aplicada de uma forma bem kafkiana para retratar o
consumismo e o desejo moderno de cada vez mais se tornar dependente de coisas
para se tornar “uma pessoa real”, como se a felicidade e a vida plena fossem
frutos de bens materiais e muitas vezes artificiais. Esse conflito é encarnado
pela imagem de um mega centro comercial, que controla a economia de toda uma
região no livro. O personagem principal, um simples oleiro, se descobre no
momento mais negro de sua vida quando o centro decide não comprar mais seus
produtos, pois o barro está sendo substituído pelo plástico. E enquanto tenta
se adaptar para não ser esmagado (algo que o capitalismo adora fazer com tudo o
que julga obsoleto e fora de moda), o oleiro irá enfrentar todas as questões
existenciais de nosso tempo e fazer uma profunda análise da pós-modernidade.
(Ler A Caverna à luz de Bauman, por exemplo, é uma experiência intelectual incrível).
Esse romance que possui muitos elementos
distópicos é encarado pelo autor como uma alegoria do mundo moderno, um mundo
onde os laços humanos tem sido podados em função da coisificação planetária e
cada vez mais a indiferença e a brevidade se tornam tendências universas. Capaz de arrancar lágrimas (quem não ficou
indignado com o destino de Achado?), de levar a reflexão profunda (acredite, é impossível
sair ileso desse romance), e com uma terrível tendência para se tornar cada vez
mais atual, A Caverna é talvez o melhor romance da segunda faze do autor e foi
uma das melhores leituras que eu tive o prazer de realizar em 2014. Ler A
Caverna é ler o mundo onde estamos, indispensável para qualquer leitor crítico.
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